quinta-feira, 3 de março de 2016

Hein?!

Fonte da imagem: www.gazetadopovo.com.br
(obra de Arcangelo Ianelli, exposta no Museu Oscar Niemeyer – MON, Curitiba, PR)

Oficial de altíssima patente recebeu nome e sobrenome pomposos. No entanto, por motivos de saúde, está recolhido, após comandar tropas aguerridas, de prontificar os meios bélicos mais distintos e de enfrentar terríveis inimigos, em várias frentes.

Por exigência profissional, residiu em várias localidades pelo país afora e, também, no exterior, sendo que esta situação lhe proporcionou enorme satisfação pelo reconhecimento da sua dedicação profissional irrestrita.

Estando reformado, após cumprir todas as etapas da carreira, relembrava saudosista o tempo da ativa. Eram muitos os casos. Abundavam as recordações das aventuras, dos antigos chefes, dos bons camaradas e dos fiéis subordinados. Dono de memória prodigiosa, principalmente, para velhas passagens, contava tudo sem negligenciar nenhum detalhe. Orgulhava-se dos quase cinquenta anos de serviço ativo.

Seus guardados ocupavam muitos volumes, constituindo-se em rico acervo. Relatava com emoção os acontecimentos relacionados às medalhas, aos diplomas e às referências elogiosas. Exibia cuidadosamente cada um dos “troféus” da coleção, sempre fazendo comentários ilustrativos. O interlocutor apreciava atento, prestigiando a exibição, afinal as histórias eram interessantes e reais.

Mas o velho soldado ficou impossibilitado de combater. O campo de batalha passou a ser outro. As manobras desenvolvem-se a pé, em espaço reduzido.

Em torno de uma década atrás, passou o nosso herói a levantar-se bem cedo, todos os dias, e a colocar a farda de maior gala. Ficava assim, engalanado, a balbuciar coisas desconexas, como que dando ordens, fazendo discursos, como saber?... Ao final daquele momento crítico, perguntava incisivo: - Hein?! O fecho tinha duplo sentido, pois era vigoroso e, também, inconclusivo, indagador.

Por toda a vida manteve-se um homem enérgico, exigente, de hábitos rígidos. Não se deixava tergiversar nem transgredir. Conduziu-se sempre em linha reta, sem atalhos. Trajava roupas austeras. Tudo sem brilho. De brilhante somente a carreira militar.

Ultimamente, por alguns dias, demonstrava excessiva euforia. Em outros, entristecia-se bastante. Seu apetite igualmente variava. Alternava fome desmedida com inapetência acentuada.

A família, embora não entendesse, estava ciente de que urgiam as providências. Em função de aconselhamento médico, foi decidida, para o bem de todos, inclusive o do paciente, a internação na Unidade de Saúde Mental da Corporação. O seu estado controverso poderia agravar-se, tornando a convivência domiciliar difícil e inadequada.

Apesar do uso de vários remédios e do apoio psicológico, persistia a necessidade de tratamento específico e diuturno, que se não permitisse a cura, ao menos que desse conforto ao enfermo.

Suas relíquias e fardas ficaram para trás. Houve desapego por parte dos parentes para doar essas recordações.  Não poderiam acompanhá-lo na nova e reclusa jornada.

Existem, com certeza, a partir de determinado período da existência, motivos para deixarmos no passado aquilo que nos é mais caro: as pessoas, a carreira, os pertences, porém, permanecendo indeléveis as lembranças. Estas vão tatuadas em nós para sempre, mesmo que a memória fraqueje, restarão resíduos de lucidez.  As razões são inúmeras, pois o mundo gira, e, no girar, as coisas precisam de ajustes. A questão é o peso que a separação, do que for, repassa para as nossas vidas.

Ele aceitou, até com facilidade, o tratamento. Bom começo para uma longa temporada, que iria se transformar em doída tentativa de resgatar o bravo combatente da doença.

No novo “lar”, sem muito contato com a realidade das pessoas comuns, construiu um mundo só seu...

Nos aposentos, através de uma pequena janela gradeada, observava, por muito tempo, a nesga de natureza que lhe era permitida. Mantinha-se sentado na cama, voltado para a janela, rodopiando com os seus pensamentos, e aparentemente calmo. Raramente, deitava-se para relaxar, ler um livro ou algo a mais. Sua postura representava estar quase que permanentemente em posição militar.

Nas manhãs, havia um período programado para o passeio pelo bosque da Unidade de Saúde. Aos internos ficava liberado o contato com o jardim, incluindo sadia caminhada. O local contém muitas árvores, o que permite gostosa sombra e lazer.

Seu ritmo de caminhar era vigoroso, com passadas largas, e trazia os braços cruzados nas costas, entrelaçando as mãos. De cabeça erguida, ia solene em direção ao nada. De quando em vez, voltava a cabeça para trás, por cima de um dos ombros, e dava enérgicas vozes de comando aos subordinados, considerando as árvores os seus soldados. Ali estava a sua tropa. Completava as ordens com o indefectível “hein?!”

Até que cansado, retornava ao quarto, dessa vez de cabeça baixa, dando ares de constrangimento.

A instituição militar a qual pertencia descobriu e tratou de corrigir grave erro.

Uma condecoração importante, merecida por direito, deixou de lhe ser dada enquanto na ativa.

Então, era momento de desfazer o equívoco, fazer-se justiça. Em decorrência, foi marcada a cerimônia militar para oficializar o preenchimento da lacuna. Foram convidados familiares e autoridades da área, além dos companheiros de farda, dos velhos tempos.

O pessoal de saúde mais próximo ao doente explicou o motivo do evento, antecipando, paulatinamente, o que seria realizado, para que houvesse compreensão do conjunto da cerimônia, ressaltando a importância, para justificar a necessidade do seu comparecimento.

Realizada a parte inicial, as derradeiras providências foram postas em prática, dentro da cortesia e das tradições que norteiam a conduta militar. Inclusive, não faltariam a formatura em pátio descoberto e a banda. Para complementar, foi programado um coquetel no salão nobre, sem bebida alcoólica, para fechar em grande estilo a solenidade.

O momento efetivo da cerimônia foi tenso! O homenageado atrasou-se. Mas após várias chamadas e conversas, ele compareceu. Trajando pijama e sandálias. Fazer o quê? Era o seu uniforme. Aliás, um pijama branco imaculado, impecável.

Postou-se no local marcado, colocando-se em sentido por toda a cerimônia. Ocorreram os discursos de praxe, mas ele declinou de falar, fazendo o sinal de mão característico de que seguissem à diante (o tradicional “segue o barco”). Preferiu calar-se. Na verdade, nem ficou definido se compreendeu na íntegra o que se passava. Devia estar confuso, apesar da “tradução” simultânea de uma das filhas.

Claro, que o momento mais emocionante foi a aposição da medalha no peito, pela autoridade de maior patente presente, tendo ao lado um subalterno conduzindo uma almofada, onde a caixa de veludo sobressaía!

Silêncio total! Apenas a batida compassada de um tambor. E talvez, somente, o coração do velho soldado estivesse fora do compasso, acelerado de emoção. Mas era difícil avaliar. Suas emoções rareavam no aspecto lógico ou de orientação.

Terminada a cerimônia, os presentes foram convidados para a confraternização no salão nobre, onde o agraciado seria cumprimentado. E, em seguida, deu-se o deslocamento para o local.

Aconteceu, inusitadamente, que o principal elemento da cerimônia “não se tocou”! Apesar dos insistentes chamamentos, ele não atendeu. Ao contrário, arrematou explicando-se:
- Não irei. Vamos agendar o próximo evento para outra data; agora preciso descansar.
E completou balbuciando:
- Se querem que eu vá, falem primeiro com o meu assistente-secretário. Depois verei o que fazer.
Perplexidade geral!

Da posição impassível, fez meia-volta, marcialmente, e se dirigiu ao repouso. Quebraram o silêncio o tilintar da medalha, agitada pelo caminhar em passo marcado, e o proferir de uns tantos “hein?!”, antes de entrar no corredor de acesso ao quarto.

Alfredo Domingos