segunda-feira, 19 de março de 2018

Adeus ao tio Lucrécio



Fui levar o meu sentido adeus ao tio Lucrécio. Caía chuva fina, num dia cinzento, o que não atrapalhava nem glorificava o evento fúnebre. 

Diziam, no passado, sem fundamento, que velório com chuva era sinal de que o céu chorava pelo defunto – frase melancólica, associando a divindade à tristeza da situação. O céu nunca chora! Ao contrário, glorifica! 

Indo em frente, lembrei-me de um antigo chefe, que sempre alertava sobre a relevância que todas as ocasiões merecem, sejam elas de tristeza ou de alegria. Daí, valer a pena prestigiar e associar-se, também, à dor. Solidarizar-se. 

O tio teve a vida com a cara do seu dia final. Sem grandes altos. Sem grandes baixos. Ele era um homem sério, metódico, mas gentil. Era o que chamamos de reservado. Suas palavras eram apenas as necessárias. Seus gestos eram assim, também. Nada de exageros. 

Trabalhou na repartição pública, onde cumpriu rigorosamente as regras e os horários. Habitualmente, usava terno, acompanhado por discreta gravata, e sapatos de couro, impecavelmente engraxados. Como detalhe importante do traje, trazia uma reluzente pérola presa à gravata, dando o toque de distinção. 

Obviamente, a sua filha, com zelo, preparou o pai para a derradeira viagem dentro do figurino costumeiro. De terno, camisa branca, gravata e a pérola. Quanto a esta, apareceu quem fosse contra a sua inclusão, pois foi alegado desperdício pela perda de joia familiar. 

Incrivelmente, numa hora triste, há gente, que se agarra aos bens. Este, em especial, sendo avaliado por um setor de penhores, provavelmente, não daria para pagar uma pizza tamanho gigante. 

Não foram esquecidos dois instrumentos vitais na vida do tio. Os óculos de grau e o pentinho de osso. Ambos seguiram no bolso, fiéis até na eternidade. 

No vazio de ideias que a ocasião gerava, num canto, de mão no queixo, comecei a pensar como ele agiria. 

Imaginei a cena da véspera do seu último dia, onde tudo começaria, considerando ter sido o tio um homem prevenido. 

Organizadamente, ele estaria preparando-se para o evento que viria. Reunindo o necessário. Escolhendo um a um os elementos da sua composição: a identidade (é prudente estar documentado), para qualquer eventualidade, com a fisionomia antiga, de bigode fino, colarinho alto e laço estreito na gravata; o lenço, para momentos delicados, sabe-se lá; a caneta da marca Parker, para alguma rubrica de última hora e também para as palavras cruzadas; a caderneta das contas mensais, para controle das despesas; os óculos, claro, para ajudar a enxergar na escuridão; o pentinho, para manter o cabelo permanentemente alinhado; o cinto, porque calças frouxas não ficam bem; mas quanto aos sapatos, tive dúvida se os incluiria - de repente, trariam incômodo em local tão sem espaço, além de que não teriam utilidade. Achei prudente somente as meias, para agasalhar os pés. 

Depois desse primeiro devaneio, veio-me à mente a questão das carpideiras. O tio comentava, lembro-me, que velório sem o pessoal chorando não tem graça. Se deixar por conta dos parentes, não sairá boa obra. Começam com força total e vão, aos poucos, esmorecendo. Em consequência, a partir do esmorecimento, já não há alma piedosa para chorar. A saída, que dá resultado, é a contratação de senhoras. Pagando, a coisa funciona! Pelo jeito, esta providência falhou... 

Em seguida, observei que, na capela, uns poucos deixavam rolar lágrimas esparsas, insignificantes, sem glamour, e o resto conversava. O tio estaria uma “arara”, lamentando. Deveria estar percebendo, de alguma forma, a pouca importância. Em contrapartida, puxará o pé de cada um daqueles dali, durante a noite, fantasmagoricamente! 

Abandonei o fantasma vingativo, e continuei vadiando com o pensamento. 

Lembrei-me da música de Paulinho Moska, “O Último Dia”, que logo no início questiona: 
“Meu amor 
O que você faria se só te restasse um dia? 
Se o mundo fosse acabar 
Me diz, o que você faria? 

Ia manter sua agenda 
De almoço, hora, apatia?
Ou esperar os seus amigos 
Na sua sala vazia?” 

Associei a despedida de Lucrécio ao último dia de nossas vidas, se, por ventura, fosse anunciado. 

O tio estava hospitalizado, combatendo doença antiga, renitente, que provavelmente daria no que deu. 

Então, não era a sua situação. O aviso já vinha de longe, infelizmente, o que deve ter proporcionado a ele muitos planos criativos inicialmente, e, após, trazido desânimo, no correr do tempo. 

Porém, quanto a nós, ainda viventes, se recebêssemos, do nada, a notícia de que tudo acabaria amanhã, o quê faríamos? 

Moska indicou, na música, várias coisas: manutenção da agenda, espera dos amigos, ida para shopping ou academia, andança pelado pela chuva, e outras invencionices. 

Imaginei, sem gastar lucubração, partir para descansar. Relaxar numa espreguiçadeira. Bocejar. Respirar pausadamente. Talvez, deixar-me entrar em sono profundo, e pronto! (tentei incluir a leitura de um livro, porém, previ ansiedade, na tentativa de chegar ao seu final – desisti) 

Finalmente, recordei-me da pérola da gravata do tio. Concordei com aqueles que a queriam guardar. Seria desperdício, realmente, abandoná-la à sanha do alheio. Por exemplo, por que não poderia ficar comigo? 

Aí, juntei a ideia do meu último dia, na espreguiçadeira, com a pérola. Manteria a joia entre as mãos e a levaria comigo, para aonde o imprevisto “previsto” me conduzisse. 

Alfredo Domingos

terça-feira, 13 de março de 2018

Artimanhas de Dona Bárbara



- Como vai a Dona Bárbara? 

- Minha mãe vai bem – respondi ao meu amigo Raul, iniciando a relatar a novidade que ela, agora, “apronta” nas festas para as quais é convidada.

Lá pelas tantas das reuniões, aniversários e outras festividades, sem nenhuma ciência ou saber, mas com muita arte, resolve fazer leitura das mãos daqueles que ali estão. 

A sua sorte é que as pessoas encaram com humor a iniciativa, como uma diversão, além da curiosidade. Ocorre de receber convites motivados pela pretendida atuação de animadora, o que lhe traz satisfação e orgulho, veja só... Exemplificando o prestígio alcançado, sábado passado, à noite, estava à porta um transporte, especialmente, contratado para levá-la a um “party”. 

Seu aspecto físico é magrinho, de baixa estatura e cabelos longos. Não é ao acaso que não possuo mais de um metro e sessenta centímetros de altura. Tive a quem sair. 

Passa ela a encarnar o personagem, com maestria, sem antes se fazer de rogada, dizendo-se sem dotes para tal. Diante da insistência da “plateia”, finalmente, dá início à “performance”, que tem no vestuário um valioso coadjuvante, pois mistura ares de cigana e de cartomante, com direito à saia rodada, blusa bufante e brincos de argolas. 

O semblante é compenetrado, com a seriedade que o “ofício” impõe. Consegue criar suspense, prendendo a atenção dos ouvintes. Usa palavras difíceis e de duplo sentido, tornando a aventura interessante; e lança, para realce, o artifício de fechar, de vez em quando, um dos olhos. 

Pondo em prática a atividade, dirige-se a cada um que lhe dá a mão, em voz pausada, indicando os traços da personalidade e fazendo previsões de futuro. Para tal, é claro, e não podia ser diferente, baseia-se nos conhecimentos que detém das pessoas, suas conhecidas, ainda que escassos, e nas observações “in loco”. 

Solicita entre as “consultas”, para fazer um “clima”, algo para beber, criando intervalos calculados, longos, o que faz as pessoas ficarem ansiosas pelo recomeço. Quando lhe oferecem bebida alcoólica, não aceita, confessando-se abstêmia e contrária ao vício, seja ele qual for. 

Essa postura é um dos artifícios empregados para dar credibilidade, porque mantém, em casa, ao lado da cama, sem falha, um copo de vinho tinto. Quem lhe priva da intimidade sabe. 

Às vezes, porém, exagera na dose da falação e traz para si situações desagradáveis. 

Segundo me contou, ao ler a mão de um senhor, já com os seus setenta anos, sugeriu-lhe arranjar uma companhia para o final da vida, imaginando-o solitário e carente, pois não havia constatado no recinto uma acompanhante para o coitado. Aí, a situação complicou-se devido à reação da própria esposa, muito mais nova, que surgiu de um outro grupo, dizendo-se boa cuidadora do companheiro, em alto e bom tom, acrescentando que ele não era sozinho e nem estava para morrer tão cedo. Dona Bárbara, para desfazer a confusão, precisou de toda a sua lábia, alegando que a vista cansada pelos anos havia lhe traído na hora da leitura. 

Certo dia, aconselhou a uma moça, que estava de casamento marcado, que desfizesse o compromisso, uma vez que suspeitava ser o cidadão um vigarista mulherengo. Ela escapou de uma sova graças à intervenção da dona da casa, que intercedeu, “abafando o caso”, alertando que a mesa estava servida para o jantar. A fome do pessoal teve mais força. Quando a interpelei sobre a maçada, respondeu que vira o noivo, minutos atrás, na varanda, de paquera com uma jovem, todo derretido; e a intenção era prevenir. 

O outro tropeço revelado foi quando, após observar um rapaz tossindo junto à porta do banheiro, conseguiu dizer-lhe, com auxílio do “além”, que tratasse do pulmão. Um médico presente apontou a gravidade do conselho, pelas consequências desastrosas que poderia gerar. 

Fatores que lhe são favoráveis nas suas peripécias são a carência das pessoas e a curiosidade. A necessidade de boas novas e do conforto para as aflições, geralmente, torna a assistência receptiva e crédula. Daí surge o espaço para as atuações de Dona Bárbara. 

Sendo o assunto sobre comida, adverte que come feito um passarinho, de acordo com a pouca quantidade que ingere. 

Trata-se de outro disfarce! Na realidade, é uma “faminta”. Metida à polida, mas não rejeita prato algum! Ao sair das festas, apenas nesse momento, tentando disfarçar, prepara pequenos embrulhos com doces e salgados, para darem na bolsa, de modo a regalar-se em casa. O hábito foi notado. Porém, deu certo. Passou a ser contemplada com lembrancinhas e verdadeiros farnéis. Adorou a ideia! Aprova o agrado, discordando da conotação de pagamento pelos seus “serviços”, embora, no meu sentir, entendo ser uma vergonha! Fazer o quê? Ela é assim... 

São dadas sugestões para aprimorar seus “conhecimentos”, se os tivesse, e até são indicados cursos para realizar. Desculpa-se, apelando para o hipotético, qual seja o dom, que diz ter. Apega-se ao imponderável, invocando as qualidades de sensitiva, lembrando, espertamente, que essas virtudes não são aprendidas na escola. 

Enquanto a coisa estiver revestida de humor e for compreendida como sem efeitos nocivos, tudo bem! Cuidado, no entanto, deve ser dispensado ao empreendimento de Dona Bárbara, porque, dependendo das circunstâncias e dos exageros, podem advir situações constrangedoras, sendo difícil ou impossível revertê-las. Pode-se imaginar que suas histórias fiquem a tal ponto sem governo, tamanha a criatividade, que resultem em “cana dura” para a sua autora. Afinal, poderá haver a alegação de calúnia, difamação ou algo parecido. Será?! Não à toa, os sentimentos são os seus ingredientes. Que Deus proteja a criatura ou a faça desistir da façanha! 

 Alfredo Domingos

segunda-feira, 12 de março de 2018

Mais uma música



 - Mais uma música, Rodrigo (partner-dançarino-fixo de Ruth). 

- OK, vamos lá!

E saíram a evoluir pelo salão, com passos perfeitos, recheados de evoluções. Como fazem há muito tempo, às sextas-feiras, no grande salão azul do Grêmio Recreativo Boa Esperança

Ruth Siqueira Campos, como orgulhosamente proclama, citando militar participante do Tenentismo, político do Tocantins, nomes de Rua de Copacabana e de Município do Paraná, caminha bem pelos 71 anos, com boa saúde, apesar de alguns remédios próprios da idade. Pratica caminhada, pilates e dança de salão, privilegiando o corpo e a saúde mental, num interessante planejamento de vida. Baixinha, magrinha, cuida sozinha da casa, onde faz todas as tarefas. E, para cumprir essas atividades, é bastante disposta. Conclusão: "safa-se" a contento.

Aventurou-se em aula de artes plásticas, pinturas em tela, mas se entediou. Identificou-se como sem paciência para a atividade. Ficou por pouco tempo. Não era a sua "praia".

Viúva há mais de 10 anos, depois de um casamento harmônico, com um homem quase duas décadas mais velho. 

Há uma filha, porém, enfronhada no mundo, cumprindo destinos diversos, para cursos e passeios, cujos endereços são transferidos para o “WhatsApp”. 

Com uma aposentadoria confortável, além da pensão do marido, ao menos por enquanto, antes que o Governo atue com mãos pesadas, talvez justamente, na previdência, Ruth satisfaz as suas necessidades com tranquilidade, embora não caibam exageros. 

Dessa forma, ela rompe o que seria o “isolamento social do idoso”, um mal principalmente das grandes cidades, que cerceia o direito de as pessoas envelhecerem com amor e companhia. No Brasil, do total de idosos, atualmente, 35% vivem sozinhos em suas casas, tendo que resolver problemas que surgem e espantar a solidão. 

Vamos falar de Rodrigo. Contratado, com valor mensal estabelecido, é exímio dançarino. Formado profissionalmente nas academias de dança, aos 36 anos, possui habilidade, gentileza e sorriso escancarado, para dar e vender. 

No contrato consta, embora não por escrito: 

Da parte dela - o pró-labore, o transporte, a roupa do “professor”, os sapatos, estes de verniz, em duas cores, a cerveja, os tira-gostos, e o que mais aparecer por conta do “serviço” da dança.

 Da parte dele – a bela figura negra apenas deve ser parceiro, para irem, às sextas-feiras (às 18h), e voltarem (até as 23h), e exclusivo dela, para a dança. Ficou estabelecido que, no compromisso semanal, devem ser cumpridos dois períodos de hora e meia para dançar e meia hora de descanso. 

Podemos estranhar o rigor da combinação, e até mesmo o porquê dos honorários pagos a Rodrigo. Afinal, é uma diversão. 

 Ruth imagina que, feliz ou infelizmente, quando se paga, existe seriedade, além de considerar que somente desse jeito conseguiria a certeza de ter o acompanhante, inclusive bem trajado. No contrato verbal, bem especificou: 
- Pagarei o valor pedido, mas não perdoarei atrasos nem faltas, em relação ao acordo feito, exceto em situações extremas, que deverão ser comunicadas com antecedência sensata ao horário previsto para a saída. 

No decorrer do trato, de quando em vez, fica furiosa diante de atrasos e faltas. No entanto, é condescendente.

Rodrigo, regularmente, cumpre o acordado. Ocorrem, porém, deslizes no tempo do descanso. Ele aproveita para dançar com outras pessoas mais jovens, por vontade própria, o que é válido, descaracterizando uma escorregadela. 

 Nesse desenrolar, Ruth leva a vida agradavelmente, em condições gerais compatíveis com a sua idade e com o seu poder aquisitivo, e sempre aguardando, ansiosa, as terças, quintas e sextas-feiras para o exercício do pilates e da dança, respectivamente. 

A propósito, estudos apontam que a solidão ataca a saúde física e mental das pessoas, mas nas idades avançadas isto é mais intenso. Estudiosos da Universidade de Chicago, nos EUA, descobriram que o isolamento aumenta o risco de morte em 14%, entre os que têm 60 ou mais anos. Espantosamente, a Universidade de Brigham Young, também nos Estados Unidos, comparou estatísticas de mortalidade e concluiu que a solidão é tão prejudicial à saúde quanto fumar 15 cigarros por dia ou ser alcoólatra. Para completar, há ainda a revisão de 23 artigos científicos feita por pesquisadores da Universidade de York, no Canadá, indicando a triste realidade de que estar isolado aumenta em 29% o risco de doenças coronarianas e em 32% o de acidentes vasculares. 

Por sua vez, a Organização Mundial de Saúde (OMS) divulga, em seu Relatório Mundial sobre Envelhecimento e Saúde, que o envelhecimento saudável ultrapassa o limite da ausência de doença. É preciso que o idoso tenha habilidade funcional, inserção social e sistemas de saúde diferentes dos modelos curativos. 

No Brasil, abandonar idoso (incapaz) é crime, com pena de multa e detenção de seis meses a três anos, de acordo com o artigo 133 do Código Penal. Há, em acréscimo, os artigos 97, 98 e 99 da Lei do Idoso, de nº 10.741, de 2003. 

Existem 3 tipos de abandono de incapaz: o intelectual, usado para o menor, se os pais privarem o filho de frequentar a escola; o moral, quando for ignorada a existência da pessoa, principalmente no segmento afetivo; e o material, na situação de o idoso não ter condições materiais de subsistência. 

No caso de Ruth, entendemos que as coisas caminham adequadamente, em decorrência da existência de recursos e, notadamente, em função da sua sabedoria, resolvendo-se de várias maneiras, criando boas oportunidades para si. 

Para terminar, ressaltamos que o título deste texto tem a ver inicialmente com a dança, mas indo em frente para as surpresas e as brechas, que surgem ao longo das nossas vidas. No abrir de janelas, portas, quaisquer chances, sempre teremos "mais uma música". Resta-nos sair dançando, no ritmo que couber para nós.

 Alfredo Domingos 

Fontes de pesquisa: 1) O Globo, 4/3/2018, matéria de Clarissa Pains – Órfãos na velhice: isolamento social aumenta em 14% risco de morte. 2) Jornal do Brasil, 4/3/2018, matéria de Celina Côrtes – O filão da Terceira Idade. 3) IBDFAM/TJMT, 22/3/2016, matéria de Mariana Vianna – Abandono de incapaz é crime.