quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Entendendo Quixote

Fonte da imagem: http://todoprosa.com.br
Sancho Pança e Dom Quixote, segundo Pablo Picasso.

Artes plásticas e poesia se confundem. Talvez seja para ser assim mesmo, com superposição, sem explicação para explicar.

Estes traços aparentemente simples e juvenis do Mestre Picasso, inspirados no livro “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, não foram planejados e realizados à toa, ao menos penso desta forma.

É evidente o destaque dado ao primeiro personagem, Quixote, numa diferença de planos que o engrandece, em detrimento do outro, Sancho Pança, este mais distante e em dimensões menores.

Os próprios traços da obra dão leveza e tom jocoso, anulando a seriedade de uma escrita épica, que se perpetua em importância por mais de 400 anos.

Um cavaleiro esguio e magro, montado num cavalo alto, considerado por uns como sonhador e por outros como amalucado, munido de lança, armadura e capacete não se idealiza para não ir a lugar algum. É figura com destino, no mínimo, aventureiro, e que deseja ir ao encontro dos seus sonhos, numa circunstância prosaica. A lança e a vestimenta já são indícios bélicos, no sentido de determinação e de luta, para obtenção dos ideais.

O outro homem, atarracado e gorducho, com desempenho de fiel escudeiro, é mais real, embora burlesco, inclusive por conduzir ou ser conduzido por um burrico, que certamente mal se aguentava nas pernas. De interessante, há que Pança cumpria, também, um papel avisador, fazendo com que os devaneios do outro não extrapolassem a cota do razoável. Trata-se de um anjo da guarda caricato, porém, esbanjando sabedoria.

O sol bem aceso, ao qual foi destinado um bom espaço sobre as cabeças dos dois, além de apontar a aridez da cena, revela, por inspiração de Picasso, uma loucura latente, forte, que pontua as ações dos personagens, desorientando o ordenamento das ideias, levando, vai saber, à fuga da realidade, projetando os atores envolvidos no bloco da fantasia.

Picasso, em resumo, traz a famosa passagem do livro que buscou as figuras dos moinhos de vento. Dessa forma, faz com que nos lembremos da eterna batalha entre fortes e fracos, que acompanha os seres da terra, sejam humanos, animais e outros.

Quixote entendeu que os moinhos eram gigantes ameaçadores à sua integridade. Mas o curioso é que Picasso os elaborou em tamanho pequeno, exceto quanto a um, somente, que foi colocado próximo à dupla, na tentativa de registrar o perigo que pensava existir.

Devagarzinho, vamos sair do texto de Cervantes e penetrar no campo dos sonhos, tão vividos por Quixote, por sinal. “Sonhar não custa nada, ou quase nada”, como diz a letra do samba de Paulinho Mocidade, Dico da Viola e Moleque Silveira. Então, dentro do tema da arte popular, podemos divagar, tratando dos sonhos, que podem ser de olhos fechados e de olhos bem abertos.

Dormir e sonhar são comuns!

No entanto, mesmo tendo a cabeça criativa, o exercício de imaginar, querer, idealizar e extrapolar é mais raro de virar realidade, na situação de estarmos acordados, com os pés fincados na terra. Para exemplificar, considerando como sinônimos, embora tecnicamente não o sejam, colecionamos tantos e frequentes desejos, vontades e sonhos: a moradia ideal, contendo isso e aquilo, num local dos deuses; o trabalho maravilhoso, com imensas oportunidades, que reúne todas as nossas vocações; o carro que anda nas nuvens, possuindo incontáveis acessórios e cilindradas; a namorada ou o namorado amantíssimo (a), que faz chover dengos em cima de nós; a viagem perseguida desde adolescente, de cá pra lá e vice-versa; e a aposentadoria que coroará toda uma vida de expectativas, proporcionando as delícias e os delírios a quem não está na ativa.

Mas não precisamos unicamente de coisas caras e complicadas. Nossos sonhos não moram solitariamente nessa seara. Como babamos por aquele sorvete! Como ansiamos por uma rede na varanda! Como ficamos de água na boca diante de uma cerveja estupidamente gelada! Como amamos um torresmo crocante! E como rastejamos atrás de um beijo recheado de amor! Tudo fácil, não?

Dom Quixote, Sancho Pança, eu, você, todos sonhamos e levantamos voo da realidade sem graça e sem emoção, a cada instante. Agitar e buscar outras “paradas” para o nosso agrado dependem de nós. Que tal tentar?!

Alfredo Domingos