terça-feira, 29 de maio de 2018

Coisas mínimas, pequeninas

Fonte da imagem: fotografia do autor

O pequenino, mínimo mesmo, que contraria a mania atual do muito e do absurdamente.

No entanto, ali no recolhimento da alma, no cantinho dos sentimentos, existe sentido o pequeno. Aliás, a vida é costurada nas pequenas matérias, nos escassos pedaços, nas bordas, onde passa o limite entre o existir ou não. Às vezes, um “ai” recebe mais valor do que um “peremptoriamente”, momento este em que o sujeito fala de peito cheio, gabando-se.

Então, no mundo pequeno, não posso deixar de me lembrar de Laura, a neta, de dois anos, que tem a ver com miudezas, assim como ela, rica miudeza, quando junta os dedos polegar e indicador para se referir a coisas pichititinhas.

Sua voz até muda. Ela fala baixinho, quase segredando, com ar de riso. Criança, desde cedo, tem as suas espertezas e sabedoria, como na canção “Mora na filosofia”, de Monsueto e Passos. Laura está alojada, em definitivo, na filosofia!

Pois bem, Laurinha aprendeu, sem plena consciência, até aqui, os puros caminhos da vida, interpretando-os com os diminutivos apertadinhos, nas pontas dos dedinhos, sussurrando a astúcia já adquirida, no seu tempinho de existência.

Dessa forma, vira festa mostrar a ela uma joaninha, um carrinho de brinquedo, um cisco na roupa e outras coisinhas sem tamanho.

Seus olhinhos negros brilham ao deparar-se com a novidade. O sorriso abre, envolvendo os dentinhos, ainda com lacunas. Ah, a criança é sábia! Descobre alegria, encantamento, nas singelezas, nas medidas reduzidas, nos objetos curtos.

Cá pra nós, é melhor partir do mundinho para o mundão. Dar “start”, partindo do miúdo mundo de casa, para, mais tarde, aventurar-se pelo ambiente externo, inseguro e grandão, do lado de lá do nosso quadrado.

Enquanto pudermos juntar os dedos para demonstrar o mínimo, teremos mais tranquilidade. Ao passarmos à fase de abrir os braços e falar alto, aí, meu amigo, será barra pesada, percurso para malandro enfrentar.

Viva a Laura! Menina que começa bem, do aconchego para as batalhas. Tomara que tenha arte e visão para ficar a juntar dedinhos, não precisando colocar dedo em riste nem aumentar a voz.

Vá com Deus, a reboque de boas brisas!

Que um ursinho camarada abrace docemente você.

Alfredo Domingos

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Amor rima com bom humor


Harvey e Mega Senna – príncipe e plebeia - cada um de reinos distantes, juntaram-se num casamento real, que deixou venturosas marcas. Todos os povos estiveram atentos à cerimônia, numa nítida opção pelo bom gosto, pela leveza e pelo tema de amor, entre dois jovens diferentes em quase tudo.

Pairou brisa de esperança, e pronto! Isso já valeu. Ao contrário do que muita gente argumentou: - um casamento não deve mobilizar desta forma, constitui bobagem diante de tantos problemas. Arre, para o derrotismo e para o pessimismo!

A ocasião amalgamou, positivamente, raças, credos, músicas, luxo, simplicidade; com grossa cobertura de amor aquecido.

Foi acenado que não existem, unicamente, desgraça e coisa feia. Ainda há salvação para o agradável, mesmo que ocorra o gasto público, desde que planejado e transparente.

Intuo ser melhor e sadio deixar pra lá meses, anos, eternidade, de disputa, roubalheira e ganância dos engravatados mal ajeitados, que pensam apenas no pequeno, no medíocre, para conquistar o grande perverso.

Nos lados de cá, constatamos que o dinheiro do Erário sai fácil e a contrapartida para os súditos é praticamente nenhuma. Mesmo assim, podemos pôr de lado a cara amarrada, a crítica e a preguiça, para dar a volta por cima.

Inicialmente, tracemos a recuperação pelo “bom humor”, que não custa nada aos cofres de alguém, para o quê, agora, abro espaço.

O casal mencionado, após a comemoração do matrimônio, partiu em viagem de “honeymoon”. Resolveu, entre vários lugares do mundo, transitar por aonde?

Respondo:

- Aqui (abaixo do Equador, sob o reinado do sol e da bagunça).

Foram dois escassos dias, na Cidade, plaga de gente fina! Oh! Que pena, poderiam ter esperado pelo carnaval!

Visita à obra social de comunidade. Passeio de bicicleta pela Lagoa. Missa na Catedral Metropolitana. Compras na feira de orgânicos. Feijoada na quadra de Escola de Samba, magnificamente preparada por uma das tias do samba. Escalada na Pedra. Queijo coalho na brasa, no Centro de Tradições - estas foram algumas das atrações do primeiro dia – sábado.

Café da manhã a bordo de escuna, pela Baía. Voo de asa delta. Churrasco no clube de regatas. Partida de futebol, com casa cheia, onde sobressaía o grito das torcidas: Hu! Hu! Ha! Ha! O príncipe é nosso! Rodízio de pizza. E para finalizar, trajeto no trio elétrico na direção do aeroporto – estas foram algumas das atrações do segundo dia – domingo.

Esta crônica tentou ser bem bem-humorada, deixando a lembrança de que é possível levar as coisas com mais suavidade, sem muito exigir, sem muito cobrar, aproveitando os bons momentos.

Alfredo Domingos

quarta-feira, 9 de maio de 2018

O nécessaire do garçom



É mais do que conhecida, e repetida, no âmbito da minha família, a história do “nécessaire do garçom”. Começou a partir dos anos 1980, e perpetua-se até hoje, com versões turbinadas e invencionices sem fim.

Turma numerosa e festeira inventava motivos para promover eventos. A “sede” da festança era a casa grande da avó Maria Rosa, com dois ambientes de sala, varanda fechada e outra aberta, vários banheiros e, principalmente, enorme cozinha, com todos os equipamentos que a tecnologia da época permitia. 

Utilizando a memória para passear pela casa, lembro-me das pesadas cortinas das salas, com suas borlas gigantes, com as quais, escondido, jogava bola usando a cabeça. Na época era garoto, mais ou menos com dez anos, e curtia uma bagunça. 

Em ambiente agradável, a anfitriã era disposta a bem receber, cuidando de todos os detalhes para proporcionar bons momentos. 

Um dos elementos importantes nos saraus era o garçom, sempre o mesmo, Seu Paiva. Impecavelmente trajado, era um velhinho baixinho, empertigado, rápido na locomoção, feito um azougue, e profissional esmerado, tendo gosto em servir. 

A cada festa, estava lá o Seu Paiva, que, com o passar do tempo, era quase da família. Sabia de cor as preferências dos convidados. Uísque cowboy para um, com muito gelo para outro, suco de laranja para uma, e assim agradava a todos. 

Prestativo e cônscio do seu metiê, ele portava nos bolsos, sem esquecimento, isqueiro e lenço. Na cozinha, mantinha, para as situações emergenciais, água quente com limão e pano. 

As comemorações foram ocorrendo, no ritmo em que a vida sorria por meio de acontecimentos felizes. 

Para não falarmos apenas das coisas lisas, sem imprevistos, vamos trazer algo diferente para a história das festas e do garçom. Após umas das reuniões, constatou-se que o garçom havia esquecido o seu nécessaire. Foi-se, altas horas, para casa, com pressa! 

A partir desse dia, a coisa desandou! Por obra do destino, por fatalidade ou sorte, o homenzinho sumiu! 

A avó telefonava para ele quase que diariamente. Queria combinar para que viesse buscar o nécessaire. A cada ligação correspondia uma desculpa. A entrega não se consumava. Foi oferecido um encontro com alguém da família, no Centro da cidade, para facilitar. De nada serviu! Até que a dificuldade fez com que os contatos escasseassem. Os intervalos foram aumentando. E os contatos pararam... 

Pararam mesmo, porque o telefone do garçom deixou de chamar. Batia ocupado, direto. 

Houve, por conseguinte, do nada, um ponto de inflexão. As festas, aquelas de arromba, foram também diminuindo e ficando menores. Não havia mais necessidade de alguém para servir. 

E o nécessaire? 

Foi restando. Ora aqui, ora ali. Virou estorvo. Não possuía lugar certo. Objeto pequeno, porém, com consequências gigantes, elemento estranho ao meio, em função de ser de outrem. Talvez, pura implicância.

Passamos a usá-lo como sinônimo de coisas incomodativas. Querendo dizer que alguma coisa estava atrapalhando, sem local definido, lembrávamo-nos do nécessaire do garçom:
- Isso parece o nécessaire do Seu Paiva. Não sabemos onde colocar. Coisa intrusa! 

Surgiu, depois de algum tempo, a indagação sobre o quê continha a bolsinha. Antes, não carecia de saber, não havia a curiosidade. Mas de repente, veio à tona! 

Todos queriam conhecer as entranhas. Motivada, então, a avó Maria Rosa rompeu o mistério e puxou o zíper. 

Nada mais simples existia na bolsinha cinza surrada: uma escova de dente e a respectiva pasta. 

Sem glamour ou impacto. Básico do mínimo. 

Inclusive, o achado inibiu a sensação de culpa, por não devolver. Vai saber se não foi o conteúdo óbvio e barato que desmotivou o próprio dono a vir buscar? 

As nossas coisas são “nossas” e marcamos bem a fronteira em relação às coisas dos outros. “Cada um no seu quadrado” – eta, que expressão pertinente! Essa fronteira é eivada de ciúme. Pode ser um automóvel ou um lápis. Ao esquecer o nécessaire, o Seu Paiva deixou parte sua para trás, que não pertencia a quem ficou. Se fosse algo usável por terceiros, poderia não incomodar tanto, tiraríamos até proveito. 

Atribuo à desnecessidade de servir ao pessoal da casa o principal motivo para a tal “implicância”, antes e depois do conhecimento do que havia no interior do nécessaire, que, aliás, continua na sua andança pela casa, ocupando praticamente todos os espaços vagos. 

Alfredo Domingos