quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Passeio por Minas e pela arte


Na andança por cidades interioranas de Minas Gerais, após breve passagem por Belo Horizonte, fui bater com os costados em Tiradentes. A cidade é encantadora! Cheira a história, a boa conspiração, a liberdade e a terra. O ar é ferrífero! Trata-se de um permanente entorpecer por parte da natureza. Ela não nos dá sossego. Que bom!

Um aspecto de destaque é a arte. Há ambiente e inspiração para qualquer coisa e mais um pouco. Foquemos, porém, nas artes plásticas. Dessa maneira, no ir e vir e no sobe e desce das ruas, cheguei ao atelier do artista e arquiteto brasileiro Sérgio Ramos, na Rua da Câmara, 83, fácil de encontrar, em pleno centro histórico de Tiradentes.

O local é aconchegante, a começar pela excelente hospitalidade, em uma agradabilíssima casa antiga, mas não velha.

Resumindo a arte de Sérgio Ramos, ele introduz em suas obras inúmeros elementos, sem dó nem piedade, como verificamos no quadro acima, A CRAVIOLA, de 2012. Encontramos, evidentemente, em destaque, uma vistosa craviola, rodeada por peixes, casas, pássaros, galhos de planta, escada, bandeirinhas e um possante gramofone, este dos tempos da vovó.

A multiplicidade de cores é espantosa e, ao mesmo tempo, perfeitamente harmônica, sem choque na estética.

Por outro lado, as formas dão show de bola! Curvas e retas brincam, num ótimo entrosamento, desafiando a boa percepção, porém, oferecendo chance ao entendimento.    Imaginemos a música invadindo o resto das coisas, por meio deste instrumento de cordas projetado pelo compositor brasileiro Paulinho Nogueira. Mas ao final da observação, o espírito fica sossegado e maravilhado. Não é que a composição plástica deu certo!

A obra em pauta, vamos e venhamos, inibe qualquer ambiente. Domina o cenário, justificando a crença popular de que beleza põe mesa e parede, sim, senhor!

Finalmente, é para registrar que Sérgio Ramos abriga no currículo mais de cinquenta exposições, com vinte e cinco anos de atividade artística, tendo como mote a sua seguinte expressão: “Gosto do desenho, de contar uma história, de criar algo positivo por meio da pintura”.

Alfredo Domingos

Ficha Técnica:
Dimensões da tela: 120x80 cm
Técnica: tinta acrílica sobre tela
Fontes da pesquisa e da imagem: http://pt.wikipedia.org/wiki/Craviola e material promocional do artista
Observação: a craviola é construída pela fábrica Giannini. Possui o formato parecido com o do violão, e sua sonoridade recebe influência do instrumento cravo misturada com a viola, característica que deu origem ao nome.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Em minhas mãos

Na loja de soutien, durante a espera, veio à cabeça de imediato ter os seus seios em minhas mãos.

Descarto a peça para ficar com a alma, com o desejo da alma.

Livre para ter você, minha querida. Sair do sério. Gritar de alegria. Abrir a janela para a vida. Tomar o vento das boas novas, que só o bem-querer proporciona.

Rir, melhor ainda, gargalhar! Até a cabeça virar para trás. Ficar bobão.

Agarrar vc pelos braços, firme. Sentir o tremer. Encarar. Testa com testa. Provar as lágrimas dos dois. Quentura. Rodopiar de amor.

Beijos. Abraços apertados. Derrubar na cama. Acarinhar. Correr o dedo. Alisar o cabelo.

Corpos grudados. Falar baixinho, tão baixo quanto gemer. Todas as coisas. Da saudade. Da distância inclemente. Da vontade.

Morder a ponta da orelha. Os lábios. Beijos.

Acariciar o rosto molhado. Enxergar pelos seus olhos azuis, quase um oceano. Mergulhar neles. Lembrar-me de que vinham aos meus sonhos, insistentemente. Porém, tão distantes. Angústia.

Então, de repente, ali, proximamente. Meu Deus, que maravilha!

Suas pernas maravilhosas, pra enroscar. Pé com pé, vc comigo. Respiração descontrolada. Barrigas dando entre si. Seios em mim. Resistir para o quê?

Aproveitar. Fazer. Tratar. Dar. Receber!

Alfredo Domingos

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

O Velho Marinheiro

Persiste a antiga amizade entre mim e Zoroastro, um velho marinheiro, de extensa sabedoria. Pernambucano, que com dezessete anos fugiu de casa para “servir” à Marinha, é dono de incontáveis histórias. Umas reais outras inventadas, mas todas interessantes.

Primeiro, é salutar atentar para o termo “servir”, pronunciado constantemente pelo marujo, que infelizmente está em desuso, démodé.

As pessoas atualmente “usam” os outros ou as instituições, porém, raramente servem a alguém, com desprendimento. As amizades, via de regra, são baseadas em produzir ganhos, de toda ordem.

Zoroastro veio do Nordeste, com poucos recursos, munido do intento de pertencer à Marinha de Guerra. Conseguiu. De aprendiz, oriundo da Escola de Santa Catarina, após ir parar no Sul, deslocando-se do calor para o frio, chegou a suboficial, cumprindo bela carreira, tendo passado por vários navios e organizações de terra.

Acaboclado, forte de corpo, fumante de indefectível cachimbo, como verdadeiro “lobo do mar”, faz fisionomia de pensador e profere acertadas impressões, advindas da longa experiência, curtindo a condição de encontrar-se na reserva da Força. Afinal, com três casamentos nas costas e quatros filhos, além da vida marinheira agitada, possui conteúdo para dar e vender.

Nos encontros no bar do “Bigode”, na esquina lá da rua, muita coisa é posta na mesa, junto com a cerveja e a batatinha calabresa, especialidade da casa.

No ir e vir do papo, num fim de semana morno, “Zorô” quebrou a monotonia com um pensamento arrasador. Disse-me assim:
- Camarada, que você me perdoe, mas estive pensando, cá com os meus botões, e cheguei a uma conclusão.

Nisso, fez pausa, deu uma golada na cerveja, deixando o copo pela metade.

Pigarreou e continuou:
- Vou logo ao assunto. A vida da gente transcorre igualzinha a de um navio.
- Explico:
- Quando se morre, fica tudo pra trás. Acabou-se! Aquilo que pensávamos ser nosso, no que tínhamos amor, já era! Foi! As mulheres. Os filhos. As dívidas. As tranqueiras com que entulhávamos os armários. Os livros estimados. As cachaças que bebemos. Até as minhas medalhas. Acabaram-se!
- Com o navio é o mesmo. No momento da partida, de suspender de um porto para outro, quando as espias (os cabos que prendem o barco) são retiradas do cais, o cordão umbilical atado à vida comum é cortado. Passamos a viver o mundo somente de bordo. Com os chefes e companheiros. Está me entendendo? Não há imbróglio que siga mar adentro, como a sogra pra aturar, os filhos pra educar, as contas pra pagar, o proprietário do apê pra aporrinhar, etc. e tal. Sem falar nas madames, que por um tempo descansam de nós, e o mesmo ocorre conosco, em relação a elas.
- Faço a comparação das duas situações, nem sei se cabe, mas sinto assim. As duas coisas produzem um corte violento. Uma acaba com qualquer projeção e a outra liquida as pendências de terra, ao menos temporariamente. Ficamos aliviados por um período. 

De novo, uma golada de cerveja. Copo vazio.

- A única compensação é que no navio estamos vivos e ao voltar a casa é uma festa só! E prosseguimos, inclusive com os aborrecimentos! Porém, amigo, temos uma certeza: estamos aqui, firmes, de marré deci. Graças ao Divino!
- “Bigode”, mais uma “cerva”. Esta já deu!
- Ah, entendi! – complementei.

Alfredo Domingos

Mulher-interjeição



Aprendi, lá atrás, sobre a interjeição. A gramática diz que se trata de expressão apresentadora do nosso estado emotivo. Reação pura, sem rascunho. Não está inserida nas classificações clássicas das palavras. É um vocábulo-frase. Seja ela de admiração, dor, impaciência, espanto, dúvida, alívio ou outra reação qualquer. Pode ser representada por um tico de palavra ou por duas ou mais palavras.

O maneiro é que a interjeição exprime muito com pouco recheio. Por si é uma verdadeira oração. Vai direto ao tema sem delonga. O interlocutor ou leitor capta de imediato a mensagem, mesmo que o motivo tenha sido extenso e complicado.

A nossa secretária na cozinha da fazenda usava “Opa!” pra tudo. Era assim:
- A comida está pronta, Arminda? Aí vinha a resposta: - Opa!
- Que calor está fazendo, hein, Arminda? De novo: - Opa!
- Vou ao comércio, precisa de alguma coisa, Arminda? Nesse caso a contrapartida era diferente: - Opa! Tenho de ver.

Bom, já deu para acreditar que a reação era da mesma maneira, todo o tempo.

Mas, na realidade, esta história da interjeição tem outra motivação. Quero conduzir o barco a outro porto.

Viro e mexo, acabo reportando-me a Violeta Bacamarte, reconheço. Nesse contexto, lembro-me dela de cabeça baixa na máquina de costura ou conduzindo a agulha, sentada no sofá, ao largo da passagem do furacão, que é uma casa, à noite, com cinco pessoas que têm interesses e personalidades diversas.

A criatura é ensimesmada ao extremo. Calada, até quando não deveria. Afirma que consegue sucesso dizendo nada. Melhor do que meter o bedelho.

É daquele tipo que dá uma boiada para não se intrometer em confusão. Relega, positivamente, a entrada em qualquer querela.

Não se trata de ser desprovida de opinião, não. A preferência é pela posição de ouvir muito mais do que falar. Costurar com as palavras não é do seu figurino, muito menos tecer colchas de “disse me disse”. Isso ela deixa para o companheiro, Túlio Bacamarte, que este, sim, é palavrista de primeira hora, nosso escrevinhador, que trazemos no bolso para deleite em vã ocasião; apaixonado contumaz por um pedacinho de papel, de modo a versejar, ou por uma conversa sem pressa para terminar.

Voltando à interjeição, pois chega de tergiversar, Violeta é chamada pelo marido de “mulher-interjeição”. O enredo toma corpo a partir da troça do parceiro.

Chega o poeta em casa, ansioso para deitar falação, encontrar eco, obter parceria, contar sua façanha diária, e encontra, invariavelmente, a mulher debruçada sobre a costura, concentrada, produzindo maravilhas.

Ele agarra a palavra e não solta. Desfiando, com detalhes, a meada em que esteve enrolado ao longo do dia.

De quando em vez, pergunta: - Está entendendo? – O que você acha? – Fiz bem?
A resposta não sai do padrão, mudando apenas a forma de expressá-la.

Ora Violeta responde com suspeita “hum!”, ora alivia-se deixando escapar um “eh!”, mais adiante traduz admiração usando um “ah!”, também se socorre do “tomara!”, para indicar um desejo, e, já no final do diálogo, que foi praticamente inexistente, arremata com uma locução interjetiva, ao defender-se da acusação de que não está participando “ai de mim!”. Mas cá pra nós, na maioria das vezes, emite um conciso “hum!”, que resume tudo e não compromete.

Túlio não se emenda! Sempre reclama de Violeta, mesmo sabendo ser a companheira de poucas palavras. Até porque, ela argumenta que, falando, reduz a possibilidade de errar ou de ser mal interpretada. O jeito particular não significa desprezo. Na verdade, o bom andamento da costura depende de atenção redobrada, para que não haja erro no traçado da linha e na construção da arte, além de ser o SEU MOMENTO, restritíssimo.

Cada um com o seu modo de proceder. Por exemplo, Túlio faz o seu vaivém noturno, em casa, agarrado no radinho, para saber das últimas que estão no ar, principalmente no campo do esporte. Talvez o som incomode. “Psiu!” Não espalhe, OK?

Alfredo Domingos
(o autor apresenta as interjeições, destacadas pelas aspas, valendo-se de um texto)

Admirável São Francisco Nosso!

 
Fonte da imagem: www.franciscanos.org.br
Obra de Nelson Porto, pintor brasileiro (1950-1989).

As cores principais são telúricas, exceto a maçã vermelha, que representa o pecado, a perdição, fazendo o contraste.

Árvores e flores reduzidas no tamanho para apenas adornarem, sem marcar o conjunto.

Montanhas. Talvez de Minas. Talvez significando as dificuldades da vida. Os altos e baixos.

Casinhas modestas, como o nosso povo. Posicionadas ao fundo, distantes no acesso e no sonho de termos um teto.

São Francisco! Simples. Pés ao chão. Batina também da cor da terra. Alto. Figura quase centralizada, marcante. Um divisor da natureza, tendo as casas e as terras sob si.

Um elemento em destaque: a sua cabeça. Em forma de coração! Amor para todos! Cabelo e barba fazendo o contorno.

A pomba gigante. Linda! A paz está com ela e por meio dela para aproveitarmos. Belo simbolismo! Parece ser tocada pelo Santo, levemente.

E a visão através da janela, indicada pelo arco desenhado acima. A poesia a distância. Observada. 

Oração do Santo para ajudar a pensar. Fazer sentido, nem que seja com alguns trechos:
- as trevas virarem luz;
- a ofensa virar perdão;
- o ódio tornar-se amor;
- amar para ser amado;
- dar para receber; e
- buscar a vida eterna, mesmo sendo após a morte.

A concepção da arte não encerra o sonho do pintor-poeta. A janela está aberta para a reflexão sobre dois sentimentos básicos: o perdão e o amor (ambos constantes da Oração).

A PAZ encimando tudo, imensa na caracterização, usando o símbolo bíblico que é a POMBA, num único rasgo de cor branca dentro de um marrom praticamente total, sombrio.

Pensemos, então, na força da irmandade pregada por São Francisco. E mais que pensar, pratiquemo-la.

Alfredo Domingos

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Momento de reflexão



(o pingar constante de uma torneira dilacera os nervos)
(atua aos poucos e repetidamente)

“No Brasil, o que nos assola não é o grande mal. O perigo aqui é o pequeno mal. O mal está no mínimo.”

Este texto fez parte do excelente artigo de Arnaldo Jabor, no O Globo, Segundo Caderno, de seis de setembro de 2016.

Impressionei-me pela boa concepção do texto, porém, principalmente, pela escolha oportuna do momento para tratar do assunto. O cerne da escrita ocorre em tempos turbulentos, mesmo depois da solução da questão do impeachment da ex-presidente Dilma. Tempos esses esperados para voltarmos à calmaria política, o que nos levaria a certa paz para a economia entrar nos eixos e para resolver problemas emergenciais.

Mas, o tema de Jabor faz um alerta. Sinaliza para problema nas entranhas, que corrói o íntimo da sociedade, em todos os seus empreendimentos, de forma quase despercebida, embora feroz.

Estamos no reinado da picuinha, da implicância intermitente, da desilusão a cada esquina, da euforia superficial, de hora pra outra, do questionamento sem resposta, do encurralamento, do é assim e pronto!
Perguntamos inocentes, desavisados: - Cadê a lei? Qual o decreto? Onde está o respaldo?

Não há nada sobre isso. As tratativas são nas sombras, como é moda dizer. Entre uma caçada e outra ao Pokémon. Às escondidas! Mesmo que se trate de assunto votado no Congresso, a sua deliberação baseia-se num estalar de dedos, no que é chamado de fura-pauta.

O rumor é ferramenta dos bobos. O ladino esgueira-se. Consegue sucesso dos intentos sem alarido. O incompetente e inocente grita, esbraveja, arma barraco, uso o destempero. O sabido é polido. Lança mão de artimanhas. Fala ao pé do ouvido. Tapa a boca para que as palavras não sejam percebidas pela leitura labial.

Daí, todos ficam sabendo somente quando a bomba estoura. Porque a ideia matreira saiu da bolação de poucos. Então, funciona assim: o que prejudica ou favorece a maioria é decidido pela minoria? Respondo: - Exatamente!

O bullying bem representa essa ação sub-reptícia, pelos escaninhos, ressaltando a audácia de zombar em equipe, com o amparo de muitos, e notadamente usando da insistência, num processo desenvolvido rotineiramente, e em todos os momentos.

Não aparece na execução do bullying um único articulador, que assuma sozinho a autoria. Há sempre um bando, para que a responsabilidade seja diluída e a graça surja, provocando o divertimento geral; excetuando-se o atingido, claro!

A malvadeza está em esgotar o ofendido, aos poucos, persistentemente. Por isso, às vezes, vemos tragédias decorrentes, envolvendo abandono de colégio, sumiço de casa e outras coisas até mais violentas.
Voltando ao Jabor, entendo que as grandes desventuras são raras. O mal terrível surge de vez em quando, e vem arrasador. O mínimo, como ele diz, é que come como traça, infiltra-se, abre fendas, e nos desespera ao final do percurso, constantemente.

A loucura está no pequeno, que se torna gigante pela insistência e pela assiduidade. Não se acaba com um tabefe, um peteleco. Isso não basta! É necessário usar os mesmos métodos. Com esperteza. No silêncio. Sorrindo, se puder. Cerque, encurrale, fatie e extermine!

Alfredo Domingos

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Papo com o Anjo da Guarda


Acabei de liberar você (meu Anjo da guarda). Em termos. Não o livrarei de vez, nada disso! Antes, considerava que você era um soldado, fardado e tudo! Vestido, praticamente, com uma armadura, em minha defesa, como São Miguel Arcanjo. Fiel. Obediente. Um guardião aguerrido, pronto para o combate.


As suas tarefas são muitas e espinhosas, sem descanso, inclusive enquanto durmo: ao meu lado, atrás, acima, abaixo, dentro, onde for cabível um Anjo atuar.

E além, você permanecia preso. Espremido pela vestimenta. Arqueado. Limitado nos movimentos.

Porém, era incontestável a sua dedicação ilimitada. Sempre atento. Paciente ao extremo. Compreendendo-me como ninguém.

Percebi o seu sofrimento. Toquei-me da injustiça e do despropósito. Apresento, em tempo, as minhas desculpas. Resolvi aliviá-lo. Concluí que lhe quero solto, liberto, para intervir a meu favor, com todas as suas forças, na plenitude.

Pergunta capital: por que manter o cerceamento a quem preciso e admiro?

Um ser oprimido não consegue bem desenvolver o seu fadário. Não tem clareza e tranquilidade para agir nem guardar. O Anjo, mais do que proteger, deve estar pronto para despertar na pessoa assistida diversas reações: pressentimentos, sentimentos, sabedoria, cautela, escolhas, persistência e tantas outras. Dessa forma, não é possível atribuir-lhe, literalmente, às suas costas, mais peso.

Não estou sendo egoísta, pensando somente em mim. Havia rigor em excesso na minha tola e maldosa exigência, que um dia, inexplicavelmente, invadiu-me. Apesar de, você não negligenciava na missão. Então, posso facilitar o serviço. Dar-lhe alegria e liberdade.

Para sacramentar a nova condição, deixo bem explicado: esteja livre, companheiro! Mas, não há jeito e maneira de sair mundos e planos afora! Nem cogite! Atenção na causa! Exiba, sim, as suas lindas asas brancas, que estavam presas ao corpo, sob a pesada farda. Sacuda a opressão, estique-se, tome para si a altivez. Todos nós gostamos de positividade por perto. Os combalidos têm poucas chances. Eu sou o seu maior fardo, atribuindo a você trabalho pra lá de árduo. Reconheço. 

Alfredo Domingos


quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Entendendo Quixote

Fonte da imagem: http://todoprosa.com.br
Sancho Pança e Dom Quixote, segundo Pablo Picasso.

Artes plásticas e poesia se confundem. Talvez seja para ser assim mesmo, com superposição, sem explicação para explicar.

Estes traços aparentemente simples e juvenis do Mestre Picasso, inspirados no livro “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, não foram planejados e realizados à toa, ao menos penso desta forma.

É evidente o destaque dado ao primeiro personagem, Quixote, numa diferença de planos que o engrandece, em detrimento do outro, Sancho Pança, este mais distante e em dimensões menores.

Os próprios traços da obra dão leveza e tom jocoso, anulando a seriedade de uma escrita épica, que se perpetua em importância por mais de 400 anos.

Um cavaleiro esguio e magro, montado num cavalo alto, considerado por uns como sonhador e por outros como amalucado, munido de lança, armadura e capacete não se idealiza para não ir a lugar algum. É figura com destino, no mínimo, aventureiro, e que deseja ir ao encontro dos seus sonhos, numa circunstância prosaica. A lança e a vestimenta já são indícios bélicos, no sentido de determinação e de luta, para obtenção dos ideais.

O outro homem, atarracado e gorducho, com desempenho de fiel escudeiro, é mais real, embora burlesco, inclusive por conduzir ou ser conduzido por um burrico, que certamente mal se aguentava nas pernas. De interessante, há que Pança cumpria, também, um papel avisador, fazendo com que os devaneios do outro não extrapolassem a cota do razoável. Trata-se de um anjo da guarda caricato, porém, esbanjando sabedoria.

O sol bem aceso, ao qual foi destinado um bom espaço sobre as cabeças dos dois, além de apontar a aridez da cena, revela, por inspiração de Picasso, uma loucura latente, forte, que pontua as ações dos personagens, desorientando o ordenamento das ideias, levando, vai saber, à fuga da realidade, projetando os atores envolvidos no bloco da fantasia.

Picasso, em resumo, traz a famosa passagem do livro que buscou as figuras dos moinhos de vento. Dessa forma, faz com que nos lembremos da eterna batalha entre fortes e fracos, que acompanha os seres da terra, sejam humanos, animais e outros.

Quixote entendeu que os moinhos eram gigantes ameaçadores à sua integridade. Mas o curioso é que Picasso os elaborou em tamanho pequeno, exceto quanto a um, somente, que foi colocado próximo à dupla, na tentativa de registrar o perigo que pensava existir.

Devagarzinho, vamos sair do texto de Cervantes e penetrar no campo dos sonhos, tão vividos por Quixote, por sinal. “Sonhar não custa nada, ou quase nada”, como diz a letra do samba de Paulinho Mocidade, Dico da Viola e Moleque Silveira. Então, dentro do tema da arte popular, podemos divagar, tratando dos sonhos, que podem ser de olhos fechados e de olhos bem abertos.

Dormir e sonhar são comuns!

No entanto, mesmo tendo a cabeça criativa, o exercício de imaginar, querer, idealizar e extrapolar é mais raro de virar realidade, na situação de estarmos acordados, com os pés fincados na terra. Para exemplificar, considerando como sinônimos, embora tecnicamente não o sejam, colecionamos tantos e frequentes desejos, vontades e sonhos: a moradia ideal, contendo isso e aquilo, num local dos deuses; o trabalho maravilhoso, com imensas oportunidades, que reúne todas as nossas vocações; o carro que anda nas nuvens, possuindo incontáveis acessórios e cilindradas; a namorada ou o namorado amantíssimo (a), que faz chover dengos em cima de nós; a viagem perseguida desde adolescente, de cá pra lá e vice-versa; e a aposentadoria que coroará toda uma vida de expectativas, proporcionando as delícias e os delírios a quem não está na ativa.

Mas não precisamos unicamente de coisas caras e complicadas. Nossos sonhos não moram solitariamente nessa seara. Como babamos por aquele sorvete! Como ansiamos por uma rede na varanda! Como ficamos de água na boca diante de uma cerveja estupidamente gelada! Como amamos um torresmo crocante! E como rastejamos atrás de um beijo recheado de amor! Tudo fácil, não?

Dom Quixote, Sancho Pança, eu, você, todos sonhamos e levantamos voo da realidade sem graça e sem emoção, a cada instante. Agitar e buscar outras “paradas” para o nosso agrado dependem de nós. Que tal tentar?!

Alfredo Domingos

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Aniversário da "ex"



Dia 2 de julho, aniversário de Joana, minha "ex-namorada".
Depois de rascunhar inúmeras bobagens (aliás, esta pode ser mais uma delas), escrevi o texto que passarei por e-mail; não possuo "face":

Branquinha (como a chamava na intimidade - nem precisava salientar a cor branca da sua pele),
Faz tempo que um não coloca o olho no outro, não é? Porém, lembrei-me do seu aniversário.
Recomendo que aproveite o DIA. Se conseguir, faça mais: dê risadas e abraços apertados com e em pessoas queridas; entre numa igreja e reze com toda a fé (conheço a sua predileção por Santa Clara), agradecendo mais do que tudo; curta de montão cada presente ofertado; use a roupa mais amada; caminhe pelo quarteirão chutando lata, refletindo, sem lenço, mas leve um documento, ele poderá ser necessário (hoje, a cada instante, precisamos provar quem somos); tome o banho do século, de preferência com sabonete novo; no jantar, coma sem cerimônia, somente iguarias, mesmo que possuam glúten, sódio e outros elementos que você abomina; deixe por um dia aquela dieta permanente; na hora do bolo, caia dentro da torta (escolha a de chocolate, minha dica); cante o parabéns bem alto, com alegria; assopre as velas, que serão algumas, desculpe a indiscrição - Rs, Rs, com vigor; beba, no mínimo, duas taças de espumante, uma apenas é sem glamour, faça tim-tim sem pudor, brinde; e em seguida, se deixarem, jogue-se na cama (prefiro que seja sozinha, óbvio!). Durma tudo que conseguir.
Acorde de cara inchada, mas com boas recordações do dia que se foi.
Vá a outro banho! Limpe o corpo, pois a alma ficou renovada, a partir do ano que teve início com o aniversário.
Depois, resolva, se puder, como carregará o novo ano de vida. Poderá levá-lo no colo, com carinho, ou arrastá-lo pelas pontas dos dedos, com sacrifício. A escolha será sua!
Para terminar, desejo saúde, paz, realizações, etc., como todos comumente fazem, para não fugir da regra.
Ah... Beijos!
Ah, espera aí... Há mais: revelo o tantão assim que gostaria de dar esses beijos pessoalmente. E como!

Alfredo Domingos

terça-feira, 21 de junho de 2016

Fotografia é o momento que fica eternizado



Batizado de maio de 1951, na Capela de Nª Sª das Graças, no Colégio Militar do Rio de Janeiro, Tijuca, Rio. O celebrante foi “Monsenhor Alfir”, no centro da foto, ao lado do batizando. Que sejam observadas as roupas dos participantes – homens de terno e mulheres de vestido, sendo que algumas estão de casacos suntuosos.
Fonte da imagem: acervo do autor


Vovô não fazia por menos. Passava a chave na porta do armário do corredor e, cuidadosamente, escondia a chave no alto da estante. Era a sua maneira de reter as fotos da família bem guardadas e preservadas, onde estavam as queridas lembranças. Aproveitava todas as oportunidades para resgatar as caixas de papelão, perfeitamente forradas por dentro e por fora, etiquetadas, etc.

Forrava com o antigo papel pardo, amarelão. Usava goma-arábica e, com a ajuda de espátula, passava a cola de lado a lado. Ao fixar o papel, novamente recorria ao instrumento para que bolha alguma se formasse, atrapalhando a perfeição do trabalho.

Apoiava a caixa, uma a uma, no sofá da sala e punha-se a discorrer sobre as histórias que envolviam as fotografias, todas datadas e com anotações de nomes e pormenores.
Enriquecia as fotos com narrativas providas de minúcias, que trazia a todos um pouco de entretenimento. Fazia, com maestria, o relato do registro fotográfico, incluindo atitudes e acontecimentos da família. Acrescentava coisas do tipo:

- Este aqui, sobrinho, está na foto com esta moça, mas não deu certo, tempos depois, babau! Acabou o namoro. Ele foi casar em Goiânia, em rápida passagem pela cidade. Bastou conhecer, para o amor chegar desavisadamente, arrebatando-o. Detalhe: a nova namorada era nove anos mais velha! Bem, deixe isto pra lá...

Adicionava, ainda, a relação, quando havia motivo, da imagem com os fatos da história do País ou da cidade, dando realce ao acontecimento. Aumentava o tom da voz para dizer:
- Aquele ali da direita foi Marechal, figurão do Século passado, foi Chefe de Polícia do Estado tal, quase indicado para concorrer à Presidência. Porém, não chegou ao comando da Nação, tendo morrido meio abilolado, não reconhecendo as pessoas à volta.

Da foto de formatura, extraía vários assuntos afins, incluindo histórias paralelas, usando, contudo, muito bom humor, que nos levava ao riso, o que tornava a empreitada tarefa agradável, solicitada por nós, sempre que surgia a chance.

O mesmo acontecia nos casamentos, praticamente, ele perdia-se em divagações. Vez por outra, precisávamos alertar:
- Vovô, por favor, volte ao tema principal, comente a foto.

Claro que algumas das fotografias ficam amareladas, e a maioria é em preto e branco.

Com o tempo, vovô faleceu, deixando saudades, álbuns e diversas caixas! Em compensação, as aventuras descritas estão conosco, e havendo oportunidade são relembradas.

As relíquias fotográficas prosseguiram do mesmo jeito. A filha mais velha trouxe para si a missão de mantê-las, e em bom estado.

Pois bem, é sabido que quem cuida consegue ter, porém, só podemos zelar por aquilo que existe fisicamente, além do que a nossa própria memória armazena. Para o restante, não se tem controle.

O meio digital torna-se efêmero porque dá a impressão de inalcançável, em função do seu esconderijo natural.

Existe, para ilustrar, enorme quantidade de fotos digitais, que são clicadas em todos os dias, e que, lamentavelmente, ficam perdidas, sem acesso, nas profundezas dos mais modernos celulares e tablets. Como exemplos - 350 milhões de imagens, todo dia, são postadas no “Facebook”, chegando a ultrapassar os 110 bilhões de fotos divulgadas nas redes sociais anualmente, sem contar o que circula pelo “Instagram” e pelo “Flickr” (dados de dois anos anteriores, aproximadamente). Recolhidas, dormem para sempre, fazendo parte de coleção invisível. O impacto que causam é relâmpago, representado por aquele “ah!” que proferimos, por segundos, e que, paradoxalmente, sepulta a emoção do momento registrado. Toda a satisfação flagrada perde-se num estalar de dedos. Em síntese, dispara-se no celular, por meio de dedo nervoso completamente alheio à realidade contextual, causando, depois, perplexidade, materializada com a clássica pergunta:
- Por que fotografei isto?

Situação quase ridícula é aquela em que a pessoa que mostrar a foto e rola, rola, a telinha e não a encontra. E você fica esperando. Às vezes, num ambiente escuro. Na boate, para citar um desses locais, que não são apropriados. Porém, o dono, enlouquecido, não se toca! Quer porque quer, ali, transmitir um “lance memorável”, que nunca mais se repetirá, ao menos é o que ele pensa! Vira agonia. Fica patenteada a voracidade por capturar e compartilhar, sem apurar a necessidade.

Os álbuns, em outra trincheira, além de românticos, mantêm tudo à mostra, sem pressa. O passar de cada folha é acalentador, calmo como era a época das fotos ali guardadas. O mostrar de álbum constituía-se em um evento. O cafezinho a fazer companhia, bolachinhas, e assim transcorria a sessão, saboreada efetivamente a cada “vapt” do avançar da página do álbum, acompanhado da indefectível folha de textura fina, que mantinha a foto resguardada.

Temos que reconhecer o envelhecimento das fotos, grande volume para armazenar, difícil transporte, poeira acumulada, algum mofo instalado; mas vencidos estes empecilhos, elas exprimem recordações, instantaneamente. O grande barato está aí, o rápido encontro entre o passado e o presente. Ali mora a história da família, se bem repararmos. São registros dos acontecimentos importantes e vitais de um grupo familiar. Com observação acurada, pode-se perceber a evolução das pessoas, suas mudanças e opções ao longo dos anos. Vovô sabia disso. Tanto que a cada seção de fotos, com jeito, ia fazendo com que notássemos as diferenças e alterações de rumo. A cada olhada, podem surgir novos detalhes, não percebidos anteriormente, por mais que vejamos. Inclusive, no viés psicológico, estão evidentes alguns modos de ser de cada membro. Aquele primo, por exemplo, sempre com a mão no bolso, encolhido. Ou então o cunhado que se esconde da foto, buscando posição quase oculta, normalmente de cabeça baixa, não encarando a circunstância.

As fotos digitais apresentam a facilidade de ser carregadas no bolso, para qualquer destino. Grande vantagem! Mas há o “porém”: não são mostradas. Verdade constatada: nas ocasiões, posamos para inúmeras fotografias, e só! Nunca mais as vemos.

Você se recorda de ser procurado, dias depois, ou mesmo na hora, com calma, para ver alguma foto em que participou? Duvido que sim!

Há os que defendem a futilidade, geralmente, das imagens postadas nos canais disponíveis, por serem passageiras, sem deixar conteúdo para o futuro. Comidas maravilhosas, paisagens, selfies de si, no espelho, incrementando a condição de superstar, enfim, está tudo com cara de “fui”, não sendo para ficar. 

A foto que ilustra este papo tem muitas e interessantes facetas. Vamos, com auxílio da lupa, bisbilhotar alguns detalhes: cerimônia provavelmente pela manhã, com muita formalidade, situação normal, na época; poucas cores claras nas roupas e, em consequência, a cor escura predominando; mulheres com vestidos na altura da metade da panturrilha, como ditava a moda, usando cabelos curtos ou presos; os homens, além dos ternos e gravatas, traziam lenço dobrado no bolso do paletó (historicamente, os lenços foram usados no lugar de uma bandeira branca, para indicar trégua, além de acenar para longe aos marinheiros do porto. Rei Ricardo II da Inglaterra teria inventado o lenço de pano) e penteavam os cabelos para trás, gomalizados; todos calçando sapatos escuros, independentemente do sexo; o padre ao centro, vestindo batina preta, é marca forte da presença austera e diferenciada da Igreja; o mais velho de todos, o avô do batizando, postou-se justamente ao lado do padre, há de ter tido algum motivo, não é?; outro detalhe relevante é a formatura que se fez, sem que alguém tivesse liderado, imagino... ou será que o fotógrafo organizou? Vai saber...; e, para terminar, notamos que as posturas, roupas e penteados indicavam ausência de ousadia característica do pós-guerra. Ser rebelde era sinal de pertencer à escória da sociedade, até que certo James Dean, do cinema, no ano de 1955, com o filme “Juventude Transviada”, com o qual se consagrou, rompeu essa linha e assumiu a causa rebelde, tendo a moto como veículo indicador do novo comportamento. Essa revolução influenciou milhões de jovens, que passaram a vestir basicamente calças jeans, camiseta e casaco de couro.

No meio da sisudez da cerimônia, como se vê na foto em tela, alguém resolveu liberar as emoções, provavelmente entediado ou exigido demais. Cumprimentos, etc. Foi exatamente a estrela do dia, o batizando, pois chora copiosamente, talvez querendo dizer:
- Deixem-me voltar à minha paz!

Finalmente, por coincidência, dias destes, na Revista O Globo, de domingo, tomei conhecimento da criatividade do artista plástico Marcelo Macedo, que garimpa velhos álbuns em feiras de antiguidade, e depois pratica a sua arte, fazendo intervenções gráficas nos retratos, alterando com colagens, recortes, etc.
Desculpem-me os modernos e antenados, mas com fotos digitais a história do vovô e o trabalho de Marcelo ficariam “dificultados”, assim eu penso!

Alfredo Domingos

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Criar a todo custo


 Obra de Edouard Vuillard, de 1891, retratando o ator e diretor
francês Aurélien-Marie Lugné-Pöe – Memorial Art Gallery, Rochester, EUA.
Fonte da imagem: fotografia do autor

Está de bobeira, engendrando besteira? Lance mão do papel, criatura. Pequenino que seja, e do lápis, de preferência bem apontado. Para completar, deixe ao lado a borracha macia.
Pronto! As ferramentas estão expostas.

Sacuda, então, a cabeça. Voe o máximo que puder. Rompa a barreira dos preconceitos e das regras. Organize o desencadear da maquinação. Se lhe ajudar, dê um grito forte e se sinta aliviado e preparado para produzir.

Até mesmo um cantinho irá servir, bastando uma pequena mesa no local. Caso não haja cadeira, não fique melindrado, sente no chão.

Em resumo, inspire-se na imagem acima, de expressiva concepção.

A impressão passada é de total entrega, com o personagem buscando concretizar ideias num tico de papel, meio torto, na quina da mesa baixa, usando, ao que parece, um cotoco de lápis, entre os dedos, quase escondido.

Vale perceber a mínima distância entre ele e o papel, havendo a tentativa de ludibriar a “presbiopia” (visão enfraquecida para leitura próxima), o que torna o exercício de ler e escrever penoso (aliás, faltam os óculos!). Mas o artista foi generoso, inserindo um facho de luz sobre o que era necessário focar, ou seja, o alvo da atenção do homem, deixando de enfatizar outro aspecto.

A mensagem final, que obrigatoriamente devemos entender é a da verdadeira obstinação em externar o sentimento, registrar situações e pensamentos, ao extremo custo! De esguelha, como der.

A escrita não dispõe de tempo a perder e chega a enlouquecer o criador, pois frear impulsos de eternizar aquilo que se reflete não é tarefa fácil de suportar, insere uma ansiedade danada! Quase um vício sem remédio. Não há explicação para explicar!

Somente os gênios desenvolvem sem cessar, criam, inventam, onde estiverem e sob as mais diversas condições, e deixam para sempre as suas obras, que brilhantemente conseguem mudar as nossas vidas, para melhor.

Alfredo Domingos

Oh, vida difícil! Será?

 Fotografado: Gilson Alves da Cunha
Origem da imagem: fotografia do autor

Se você conseguiu safar-se de todos os revezes da vida e chegou à idade avançada, parabéns! Contudo, na condição de idoso, certamente, passa por alguns problemas. Não por sua culpa, mas porque produtos e papéis são feitos para todos, sem distinção, deixando de considerar aqueles que têm restrições. Algumas coisas melhoraram, certamente, porém, falta muito a avançar!

Há a alegação de que com alguns poucos recursos o dia a dia do idoso tem solução. Então, estamos acostumados a ouvir:
- “É só” usar óculos;
- “É só” andar de cadeira de rodas;
- “É só” apoiar-se na bengala;
- “É só” possuir acompanhante;
- “É só” pedir a alguém para ajudar a entender;
- “É só” valer-se das prioridades da idade;
- “É só” receber acompanhamento médico;
“É só”, uma pinoia! Vá, você, enfrentar!

As citadas “facilidades” e outras não são para a totalidade das pessoas nem estão à disposição de qualquer bolso, em todas as situações. Inclusive, pode ocorrer a falta de suporte para arcar com os planos de saúde, tributos, impostos e medicamentos; para revelar alguns. A lacuna deixada resulta na obrigação de o idoso recorrer aos serviços ditos públicos, que não contemplam, como deveriam, as necessidades, além dos transtornos de locomoção e de espera para o atendimento. Referi-me aos serviços “ditos” públicos pela precariedade vigente, ao invés de servir ao público, de forma geral e a contento.

Acontece que surgem contratempos que impedem o aproveitamento total dos já escassos recursos. Óculos ficam defasados ou caem e quebram; cadeira de rodas, uma vez que se disponha de dinheiro para o aluguel ou compra, pede reparo e necessita de quem a empurre e a transporte (pega aqui pra colocar ali, sem fim!); cuidador capacitado é figura rara e dispendiosa (tendo o idoso que manter estrutura para apoiar quem o apoia); a casa precisa ser adaptada em muitos aspectos; há a necessidade da marcação de consultas e exames, tarefa complicada, que envolve também transporte até o local; e, pelo incrível que pareça, a informatização dos contatos, único meio em diversas situações, não acusa solução tão fácil quanto se pensa, pedindo, de início, que haja o equipamento e que se saiba operá-lo, sem incluir a questão da senha, que sempre é um entrave à parte. Claro que é ferramenta utilíssima e quase indispensável, mas... Todavia, acima disto tudo, há problemas intrínsecos, atrapalhantes em demasia: a bula do remédio com letra mínima; a escrita complicada no conteúdo da receita médica; o condutor do fio dental – passafio, na cor branca, que se perde na bancada igualmente branca da pia do banheiro; os parafuzinhos insignificantes das hastes dos óculos (haja paciência e vista para, com uma chavinha, aplicar os tais parafuzinhos); o texto longo, detalhado e praticamente ilegível, de tão pequeno, dos contratos e outros documentos, cujo entendimento é para alguém pra lá de sagaz e com visão de lince; os minúsculos números componentes das etiquetas de preço, nos mercados, que não raramente precisam de auxílio de gente mais nova, mesmo estando o idoso com os quatro olhos a postos; o diminuto tamanho das letras dos livros, que se constitui em outro obstáculo, pois faz com que o idoso perca o interesse pelo enredo em função do incômodo ao ler, e, ao contrário, é o livro infantil/juvenil que traz as letras em dimensão maior, ao lado de grandes gravuras; e, para encerrar os exemplos, saliento a enorme dificuldade em perceber a real validade do medicamento, em função dos insignificantes números colocados, quando não são da mesma cor do frasco ou da tampa.

Enquanto escrevo, já tentei três vezes marcar o oftalmologista para o meu pai, de 84 anos, sem sucesso, por detalhes dificultosos apresentados no contato. A circunstância traz um bom exemplo do incômodo. Talvez, se a incumbência recaísse sobre os ombros dele, já tivesse desistido. E saiba que ele é articulado, sem inibição.
 
Para completar, por motivos da modernidade, pelo corre-corre diário, os membros da família não conseguem auxiliar nos momentos de necessidade ou simplesmente para se fazerem presentes.

Mas, vou levantar o astral, trazendo coisas mais divertidas e positivas, como no caso das irmãs Alvarenga. São três gaiatas, no melhor sentido. Lenir, Lenita e Lenira – a primeira não ouve bem, a segunda não enxerga bem e a terceira namora! Estão na faixa dos setenta anos (escondem a idade), contudo são pra lá de ativas e animadas, realizando todos os cursos e aulas que aparecem, desde bordado à dança de salão. Excelentes cozinheiras, vivem a convidar amigos para um “lanchinho”, que se estende noite adentro, com direito a sarau, porque, além de tudo, cantam à tripa forra.

A outra história pra cima é a do tio Adamastor, sujeito empertigado, alto, magrinho, cabelo esticado para esconder a careca, sempre de roupa branca, que, na aposentadoria, corta, milimetricamente, quilômetros de pão dormido, para fazer torradas e ofertar aos amigos e parentes. Estabelece quantidades certas e as embala em saco plástico, com todo o zelo. Depois, percorre as casas entregando o mimo, preparado com carinho. Diverte-se a cada parada, bebe cafezinho, conta histórias e retorna feliz da vida. Ah... Registro que o tio passou dos oitenta faz tempo!

Em resumo, qualquer que seja a idade, a pessoa, mesmo com algumas fragilidades na saúde e tendo pela frente dificuldades inerentes a quem está vivo, que infelizmente estão aí para nos tirar o sono, deve persistir em fazer o barquinho andar, remar para prosseguir engraçando a si e aos outros, ser generosa e leve consigo e com os demais, principalmente, para que continuem a lhe fazer companhia, que sem dúvida é a parte interessante da vida.

Alfredo Domingos

terça-feira, 24 de maio de 2016

Com quantos símbolos se faz um fusca?

 
Fonte da imagem: http://pin.it/Uuy8Gs4

Dizem, em tom ameaçador:
- Você verá com quantos paus se faz uma canoa!

E eu, aproveitando a sentença popular, emendo:
- Você verá com quantos símbolos se faz um fusca!

Aliás, faço o meu protesto, indignado, contra o pouco caso que as pessoas, geralmente, demonstram em relação ao carro mais charmoso que já surgiu. Ao menos, eu acho! Pronunciam com desdém:
- Pode largar o carrinho ali mesmo, no fundo; e
- Deixe em qualquer lugar, tanto faz.

Estas barbaridades são de detonar o orgulho dos proprietários. São de arrasar quarteirões.
Costumo dizer que se você tiver muito dinheiro poderá comprar qualquer carro, seja uma Mercedes ou um BMW, até zero quilômetro, porém, em relação a um fusquinha nota dez, joia rara, somente ocorrerá a venda se o dono estiver abilolado. Afastando esta hipótese, não há acordo.
O autor do fusca estilizado foi muito feliz na bolação. Foram utilizados sinais de pontuação, da Língua Portuguesa, e emoticons, usados na informática. Qualquer criação cuja inspiração é o fusca dá certo, ainda mais se são usados bom humor, pesquisa e inventiva.
Se pensarmos bem, ele tem todas as características para desagradar: pequeno, duas portas, sem conforto, sem ar condicionado e direção hidráulica (quando é original), arredondado de fio a pavio, capacidade limitada de bagagem, teto baixo na parte de trás, entre outras coisas (quer mais?), porém, agradou, e conquistou milhões de admiradores no mundo todo.
Sua logomarca é exitosa e inconfundível, tendo força de marketing para bem indicar tudo relacionado ao carro, de imediato:

  Fonte da Imagem: bashooka.com
Volkswagem - o carro do povo
(Volks – povo, em alemão)
(Wagen – carro, em alemão)

Foi concebido e construído na época da Segunda Guerra Mundial, na Alemanha, para alcance popular, tendo como vantagens suas características principais de economia e robustez. Passou, depois, a ocupar as cidades, em plena paz, feito praga, de cá pra lá, entrando e saindo de qualquer espaço, estacionando com facilidade, subindo e descendo, às vezes levando gente muito além da sua capacidade e, vitalmente, sem enguiçar, em função da mecânica bastante simples. Estranho fenômeno! (somente é inadmissível chamá-lo de “carrinho”)
Ao lançar mão de sinais e afins, o criador do nosso invulgar fusca usou toda a pista, para, com pouca coisa, representar perfeitamente não só o aspecto como o espírito gozador e abelhudo do carro.
Olhando de frente, a impressão que brota é a de uma cara gorda, de faces largas, de um sujeito bonachão, e ao mesmo tempo travesso.
As bochechas são marcadas pelos parênteses, para oferecer os contornos e abrigar os olhos grandes. Estes olhos, os faróis, estão mais para o número zero do que para a letra o, trazendo o ar de enxerido, que de tudo quer saber ou quer ver, e para cumprir, obviamente, a missão de iluminar muito, e longe.
Barra e barra invertida dão forma aguda ao capô, com dois travessões espaçados em baixo, recebendo o marcante ponto de exclamação, que representa o friso central. A exclamação acrescenta traquinagem ao modelo, tendo um papel de protagonista, pois se encaixa perfeitamente no espírito jocoso que, por si só, o carro possui. (interessa notar que nem foi necessário ornar o capô com o emblema da Volks)
O para-brisa não faltou! Repetiu-se o uso dos parênteses, incluindo na base três travessões. Não foi preciso consolidar o teto! As curvas dos parênteses fizeram o serviço.
Os retrovisores estão presentes, por meio dos pontos, um de cada lado, que no meu entendimento não cumprem a sua missão essencial, a de finalizar. São dois brincos deslocados, que desprezaram a linha dos olhos à procura das orelhas, compatíveis com a modernidade, compondo a tal cara vislumbrada acima.
Poderia ser comentado que faltam os limpadores do vidro, os piscas sobre os faróis, o para-choque, mas todos estão subentendidos, deixando a imagem mais “clean”, sem tantos detalhes para poluir a concepção, pra lá de enxuta.
Ao finalizar, deixo caraminhola na cabeça do leitor. Uma questão serve para inquietar a vida e concluir com graça o texto.
Há um senão no nosso fusca!
Erro, de verdade! Proposital ou não. Não sei...
Olhe bem! Coloque na mente um fusca das antigas. Analise-o.
Não há pressa.
.
.
.
.
Atente para os penduricalhos.
Os segredos e mistérios podem estar nos pequenos tamanhos.
Nem desconfia? Já gastou o bestunto?
Tristeza!
Acabo com o mistério?
.
.
.
.
Vou revelar, então: o fusca original nasceu com um único retrovisor! O da esquerda. Lembrou-se?! (daí, o sublinhado feito em “um de cada lado” - foi dada a dica!)
KKKK! (linguagem frequente no WhatsApp – indica muita risada, gozação endereçada ao outro, o que peço licença para fazer agora com o amigo – não me leve a mal!)

Alfredo Domingos

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Pé pra o quê?

- pra refrescar, pé de vento;
- pra comer, pé de couve;
- pra proteger, pé de coelho;
- pra conversar, pé de ouvido;
- pra sustentar, pé de mesa;
- pra entrar, pé direito;
- pra sair, pé no rabo;
- pra sambar, pé de malandro;
- pra saborear, pé de moleque;
- pra beber, pé de cana;
- pra arrombar, pé de cabra;
- pra amealhar, pé-de-meia;
- pra nadar, pé de pato;
- pra trabalhar, pé de boi;
- pra vagabundear, pé de chinelo;
- pra costurar, pé de máquina;
- pra dançar, pé de valsa;
- pra correr, pé que te quero;
- pra viajar, pé na estrada;
- pra acelerar, pé-de-chumbo;
- pra rezar, pé de santo;
- pra musicar, pé de bode;
- pra sonhar, pé deitado;
- pra casar, pé de alferes; e
- pra amar, pé com pé.

Alfredo Domingos

terça-feira, 3 de maio de 2016

Janela para o mundo


 Fonte da imagem: streetartutopia.com
Autor não identificado

 Que saudade, Juju! Mas, entenda aqui comigo. Ao ver esta imagem, lembrei-me, claro, de você.

A natureza era tudo o que lhe atraía, a sua cabeça ganhava em criatividade, conforme narrava seguidamente as viagens feitas, por exemplo, às savanas africanas, aos Alpes franceses, aos recantos dos Andes, ao mar do Caribe, etc. e tal.

Na empolgação, você se deslocava para a janela, pedindo apoio para “furar” o horizonte e ir atrás dos sonhos, e, de costas para mim, descrevia as aventuras. Havia tanta euforia nas narrativas, que eu era apenas um ouvinte, às vezes, atordoado. E você falava sem parar, subindo o tom da voz, alheia ao resto.

Janelas rasgam o mundo para que alcancemos o infinito de expectativas. A vida vira adjetivo, com momentos de interjeição, saindo da simplória condição de substantivo.

Nem são necessárias as grandes viagens, como dobrar o Cabo das Tormentas, passar por riscos incalculáveis ou cometer façanhas. Abra uma janela, apoie os cotovelos, segure a cabeça. Já é!

Você, companheiro, que lê este texto, quer saber?...

Saia pelo quintal ou ali pela pracinha do bairro. Serão encontrados antúrios, caramujos, musgos, samambaias selvagens, cogumelos, paus, gravetos, joaninhas, borboletas, micos, cágados e uma infindável coleção de outros seres, sem contar cheiros, barulhos, raios de sol e pingos de chuva. Concordamos ser indescritível o prazer de sentir o cheiro da terra molhada, para exemplificar uma das sensações.

Num pedaço de chão, chega-se a incríveis descobertas, com mínimas quantidade e variedade de animais e vegetação.

Juju, enquanto não reconsideramos a bobagem que nos separou, naquela manhã de domingo (aliás, vamos combinar, a sabedoria indica não romper alguma coisa num dia morno, lento, de calças curtas – cometemos um erro!), podemos engendrar ideias para a imagem acima.

Para começar, entendo que há um artista por trás, ou na frente, das emoções. Grandíssimo trabalho preencheu a ombreira da janela. Cores fortes. Predominância de tons de verde (de acordo com o cenário externo), com traços de vermelho, laranja e roxo. De janela aberta, a jovem protagoniza a cena, de cara para a natureza, debruçada caseiramente, abancando-se no parapeito a sonhar, enfim! Seu perfil está bem definido, vigoroso, embora possua ar contemplativo.

A criação supera tudo o mais! Ao bater os olhos na imagem, apaixonei-me pela concepção. O truque de utilizar a lateral funcionou muito bem. O ângulo da foto colaborou bastante. É nítida a impressão de interação entre paisagem e personagem, sob a lente aguçada do mestre, unindo o que há de melhor.

Cabe lucubrar sobre a escolha. Por que o artista optou por uma jovem para modelo? Arrisco-me a acreditar que ele apostou na curiosidade própria dos jovens, na vontade irreprimível que eles têm de descobrir.

Sinto inveja, não nego! Deveria ser eu a figura. Roubaria para mim a chance. Curtiria muito!

Alfredo Domingos

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Meninos para hoje e sempre

 
Fonte da imagem: https://pt-br.facebook.com/ (Autor Desconhecido)

No acervo da MPB, destaco a música, de Rildo Hora e Sergio Cabral, com o título “Os Meninos da Mangueira". Estes, levados e sonhadores, muito apropriadamente, estão por todos os cantos, cumprindo venturas e aventuras. Da Mangueira ou não, do asfalto ou da comunidade, são apenas garotos. Emissários de São Jorge (repare na imagem que três deles trazem calções vermelhos – a cor do Santo, talvez ao acaso), com suas lanças simbólicas, de esperteza e de valentia.

A imagem aqui estampada merece comentário mais apurado.  A começar pelo pano de fundo, profundamente lúdico, que apresenta meninos ao lado deles mesmos, com o auxílio do grafite na parede. Genial!

De início, uma coisa salta aos olhos: a criatividade. Está clara a iniciativa de parceria entre os travessos e o grafiteiro, que, por sua vez, bem projetou tipos característicos do lugar.

Na obra, os detalhes foram caprichados, representando a intenção de misturar criaturas e cenário, de dar linha à pipa, afinal. Na caricatura, atentamos para ombros encolhidos, quase ocultos; barrigas proeminentes; pernas fininhas, tais e quais cambitos; pés desproporcionais; bocas gulosas e grandes, embora fechadas (dentes não à mostra, ao contrário de um dos meninos, apenas); e, fundamentalmente, foi deixado espaço entre os dois personagens.

Será que o artista previu a junção de seus modelos com os meninos? Sorrateiramente, saiu em defesa da boa molecagem? Vai saber... (só falta coincidir que o próprio é o fotógrafo, para ganhar uns trocados. Neste caso, temos estúdio e tripé prontos!)

Os garotos, na parede ou ao vivo, são do presente. Em tempos de que tudo é do amanhã, a meninada e seus interesses são para já. O presente arranha a zona de conforto, sendo implicante, contudo, sábio. Olhemos para os vivos: risonhos, peraltas, destemidos. Mas carentes. Sedentos de mim, de você e de todos. Ávidos por soluções para problemas que nem sei se são conhecidos na sua grandeza.

A infância e a juventude, abalroadas pelas necessidades, atropelam as “providências cabíveis”, das “autoridades competentes”, de cujos relógios saem horas defasadas em relação à pressa, que é ansiosa por demais!

Geralmente, nas situações mais delicadas surgem as respostas salvadoras, originais, produzidas no puro empenho. A mensagem do grafite é a de proporcionar união, deixando vãos a preencher, com qualquer um, da forma que pintar – sem trocadilho.

Então, cabe à comunidade promover a integração. Que maneiro!

“E o menino da Mangueira
Foi correndo organizar
Uma linda bateria.”

Este pequeno trecho da canção reproduz singelamente toda a esperança almejada pela sociedade: cada menino ter o seu sonho concretizado e obter algo, seja organizar uma bateria ou outro empreendimento que lhe for conveniente. Não importa o objeto a alcançar. Indispensável é a conquista!

Para concluir, perceba que interessante e grandiosa é a colocação do nome “Jesus”, no alto de tudo, sem arte alguma, porém, no sentido de abençoar as ações por ali conduzidas. Amém!

Alfredo Domingos

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Março para não esquecer


Quer saber? Foi de arrepiar!

Dizer ou escrever “no meu tempo...” ficou brega, sinônimo do que estacionou lá trás, pelo bolor do tempo e pelas ideias consideradas antigas.

Apesar desse consenso, vamos fazer uma pequena andança pelas posições e procedimentos ditos ultrapassados.

As chamadas “autoridades investidas” e profissionais de destaque recebiam consideração e chamamento correspondentes, naturalmente, dos tipos: Vossa Excelência, Senhor, Professor, Doutor, etc.

Por exemplo, acostumei-me a dar destaque aos meus professores, quase veneração. Sempre achei o médico um ser perto de Deus, ou seu representante, e nesta linha atribuía a ele irrestrito atendimento.

Hoje, tudo é íntimo, sem cerimônia, e, sobretudo, invasivo. Então, o tratamento é de você, cara, e assim vai, podendo falar e fazer o que der na telha!

O que parece bobagem, não é! Tratar pessoas considerando sua posição, título ou condição é dever. Pedir licença para entrar, sair, sentar, pegar coisas que não nos pertencem, abrir ambientes alheios e tantas outras circunstâncias era conduta habitual. Era! Agora, a situação mudou de figura, com a desculpa de não precisar dar satisfação, prestar conta, e que há liberdade de expressão e de ação. 

Respeitar e obedecer eram sentimentos inerentes às pessoas. Normalmente, as relações eram conduzidas sem descuido. Era dispensado respeito aos idosos, gestantes, gente de farda, pessoal da saúde e do ensino, poetas, magistrados; numa lista a se perder.

Dessa maneira, o bom jeito permeava a sociedade e balizava os procedimentos. Claro, que havia os exageros nos caminhos da dominação, da exploração, da intolerância de gênero, do racismo e do desrespeito à mulher; para nomear alguns desses excessos.

“Por favor” é expressão quase em desuso.

“Obrigado”, então, é facilmente substituído por “valeu”, “falou”, “show”, “devo esta”, etc.
Os membros da família andavam em bloco, unidos, e havia um chefe instituído a representar e a defender o contingente. Essa conduta permitia aspectos positivos não somente para eles como para a sociedade.

Nestes tempos, há a dispersão da família e o seu enfraquecimento, o que interfere no tecido social. Evidentemente, que a necessidade de correr atrás das oportunidades contribui para a desagregação. Os horários e os interesses são diferentes, o transporte nas grandes cidades é perverso, afastando os encontros, e, apesar das facilidades de comunicação, o tempo disponível é cada vez menor.  

A lufa-lufa separa as pessoas e faz com que elas vivam correndo, sem calma para os entendimentos, para a compreensão e para dar o respeito esperado. Sei que em tempos de pouco dinheiro o que vale é conquistá-lo. Aí, infelizmente, entra o pega pra capar desmedido!

Os valores básicos da sociedade estão em situação discutível, no mínimo, para não dizer que estão deteriorados. Os ânimos circulam agitados. A insegurança adentra os nossos lares e o trabalho, sem contar as ruas, que estão abandonadas e, ao mesmo tempo, tumultuadas. E, por fim, foi instalado o senso da artimanha, da arrogância, do pulo do gato, da malandragem, etc. 

Vamos ao ponto, no que arrepiou: o mês de março de 2016 não será esquecido! E tem tudo a ver com o aniquilamento dos agentes sociais. Março foi atingido duramente pelas questões negativas abordadas no parágrafo anterior, nos campos da política e da ética. Na verdade, não foram apenas as águas de março que nos atrapalharam, foram os vendavais do disse me disse; do falei isso, querendo dizer aquilo; da questão de foro; do concorda sem tomar para si; do está autorizado, porém, nem tanto; do sou sem assumir; do não conheço; do não vi; do caso precise; do não era meu; do não houve crime; etc.; etc. 

Essas desculpas esfarrapadas representam o que todos nós pensamos e agimos - retrato da Nação. Daí, temos como resultado várias ações desastrosas, de honestidade duvidosa: o voto mal dado, a ganância, o acreditar na impunidade, o entender que o jeitinho abre portas e achar normal fazer porque muitos fazem. Dessa forma, concordo com o pensamento contrário à afirmação de que o brasileiro é bonzinho, educado, hospitaleiro e outras qualidades a nós atribuídas. Estamos longe disso.

O livramento da pele, a qualquer preço, esteve presente, sobre quaisquer sinais de fogo e evidência. Foi um salve-se quem puder! E muita gente endoidou, na fuga apressada da responsabilidade. 
A conduta nos acontecimentos de março e naqueles de antes, com desdobramentos, que dominam a opinião pública desde 2013, além das consequências diretas ruins, indicou diversos agravantes, de repercussão incalculável. Encerramento de empresas, demissão de empregados, interrupção de obras, abandono de residências e até de animais, pois seus donos não tiveram condições de mantê-los. Isso foi e é terrível, sem conseguirmos estimar quando haverá conserto.

Sem aliviar alguém, erramos todos nós! 

Estamos metidos num grande imbróglio, que nos custará caro para dele sair. 

Então, penso que o bom suporte familiar e a sociedade organizada, com os seus deveres e direitos definidos e respeitados, poderiam ter nos salvado da encrenca reinante, apesar da imposição constitucional, não sendo novidade alguma se assim fosse feito. Mas não deu!

Exemplo negativo foi deixado, quer para a atual, quer para as futuras gerações, disso não se pode fugir. Reparar o que está arranhado é obra para já, de acordo com o rumo certo a traçar.

Finalmente, para entrar no lúdico, pegando leve, apresento a mim mesmo o argumento de que os desacertos vêm de longe; e retiro alguns trechos da letra de Jorge Melodia, Noronha, Marcos Zero e César Ouro, do ano de 2004, do samba-enredo do G.R.E.S. São Clemente (RJ) - “Boi voador sobre o Recife”, que cabem perfeitamente no nosso contexto:

“Era a Corte um rebu
Se ouviu o sururu, vai pra ponte que partiu
Com o laranja endividado
O pedágio foi cobrado, o primeiro do Brasil
O boi voou, começou a roubalheira
A galhofa, a bandalheira, pra chacota nacional
Mas tira o olho, ninguém tasca eu vi primeiro
Tem muito boi brasileiro, pra comer nesse quintal

Onde a zorra vai parar
Eu tô sofrendo, mas eu gozo no final
A São Clemente faz a gente acreditar
Que no Brasil o que é sério é o carnaval”

Ah, não para por aí! O restante do nome da obra dos artistas do samba é “Cordel da Galhofa Nacional”. Que curioso! Tem coerência total com “março de 2016”! 

Alfredo Domingos

segunda-feira, 11 de abril de 2016

No cordão de Noel


Seu Noel, oh, seu Noel!
Ando Cismado, vacilando.
Confidenciei a desdita Ao Meu Amigo Edgar.
Ele estranhou, perguntando:
- Por que bebes tanto assim, rapaz?
E complementou: - Se é por causa de mulher, é bom parar. Porque nenhuma delas sabe amar.
Sei que sou um Bom Elemento,
Mas, Cansei de Implorar, Cansei de Pedir.
Não posso, porém, dar a impressão de ser Capricho de Rapaz Solteiro.
As emoções nos varrem como Chuva de Vento. Fazer o quê?
Bem sabemos que o Coração é o grande órgão propulsor.
- Coração, és o cofre da paixão. É o que tenho a dizer. Não é desculpa, não.
Quero ser firme, sem tremer ou tartamudear,
Conseguir, enfim, ser o Dono do Meu Nariz.
Enquanto isso, preciso impedir o Disse-me Disse.                
Todos acham isso ou aquilo. Falar é fácil.
Na real, Quem acha vive se perdendo,
Por isso agora eu vou me defendendo.
Em compensação, A filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim, nesta prontidão sem fim.                                         
Devo tratar de Esquecer e Perdoar, para uma vida melhor levar.
Nunca... Jamais vou desanimar, e uma boa saída está no samba.
Assumo que o Batuque é um privilégio.
Ninguém aprende samba no colégio.
Tenho que dizer, modéstia à parte, eu sou da Vila.
Ademais, o nosso Martinho, sábio, já escrevinhou:
Sambar na avenida, de azul e branco, é o nosso papel,
Mostrando pro povo que o berço do samba é em Vila Isabel.

E nessa onda eu vou, esbaldando-me, jogando a tristeza pro alto...
Seguindo e reverenciando os bambas, como você, mestre Noel Rosa.

Alfredo Domingos

Nota: as partes do texto em Itálico são trechos de músicas de Noel Rosa e de Martinho da Vila.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Hein?!

Fonte da imagem: www.gazetadopovo.com.br
(obra de Arcangelo Ianelli, exposta no Museu Oscar Niemeyer – MON, Curitiba, PR)

Oficial de altíssima patente recebeu nome e sobrenome pomposos. No entanto, por motivos de saúde, está recolhido, após comandar tropas aguerridas, de prontificar os meios bélicos mais distintos e de enfrentar terríveis inimigos, em várias frentes.

Por exigência profissional, residiu em várias localidades pelo país afora e, também, no exterior, sendo que esta situação lhe proporcionou enorme satisfação pelo reconhecimento da sua dedicação profissional irrestrita.

Estando reformado, após cumprir todas as etapas da carreira, relembrava saudosista o tempo da ativa. Eram muitos os casos. Abundavam as recordações das aventuras, dos antigos chefes, dos bons camaradas e dos fiéis subordinados. Dono de memória prodigiosa, principalmente, para velhas passagens, contava tudo sem negligenciar nenhum detalhe. Orgulhava-se dos quase cinquenta anos de serviço ativo.

Seus guardados ocupavam muitos volumes, constituindo-se em rico acervo. Relatava com emoção os acontecimentos relacionados às medalhas, aos diplomas e às referências elogiosas. Exibia cuidadosamente cada um dos “troféus” da coleção, sempre fazendo comentários ilustrativos. O interlocutor apreciava atento, prestigiando a exibição, afinal as histórias eram interessantes e reais.

Mas o velho soldado ficou impossibilitado de combater. O campo de batalha passou a ser outro. As manobras desenvolvem-se a pé, em espaço reduzido.

Em torno de uma década atrás, passou o nosso herói a levantar-se bem cedo, todos os dias, e a colocar a farda de maior gala. Ficava assim, engalanado, a balbuciar coisas desconexas, como que dando ordens, fazendo discursos, como saber?... Ao final daquele momento crítico, perguntava incisivo: - Hein?! O fecho tinha duplo sentido, pois era vigoroso e, também, inconclusivo, indagador.

Por toda a vida manteve-se um homem enérgico, exigente, de hábitos rígidos. Não se deixava tergiversar nem transgredir. Conduziu-se sempre em linha reta, sem atalhos. Trajava roupas austeras. Tudo sem brilho. De brilhante somente a carreira militar.

Ultimamente, por alguns dias, demonstrava excessiva euforia. Em outros, entristecia-se bastante. Seu apetite igualmente variava. Alternava fome desmedida com inapetência acentuada.

A família, embora não entendesse, estava ciente de que urgiam as providências. Em função de aconselhamento médico, foi decidida, para o bem de todos, inclusive o do paciente, a internação na Unidade de Saúde Mental da Corporação. O seu estado controverso poderia agravar-se, tornando a convivência domiciliar difícil e inadequada.

Apesar do uso de vários remédios e do apoio psicológico, persistia a necessidade de tratamento específico e diuturno, que se não permitisse a cura, ao menos que desse conforto ao enfermo.

Suas relíquias e fardas ficaram para trás. Houve desapego por parte dos parentes para doar essas recordações.  Não poderiam acompanhá-lo na nova e reclusa jornada.

Existem, com certeza, a partir de determinado período da existência, motivos para deixarmos no passado aquilo que nos é mais caro: as pessoas, a carreira, os pertences, porém, permanecendo indeléveis as lembranças. Estas vão tatuadas em nós para sempre, mesmo que a memória fraqueje, restarão resíduos de lucidez.  As razões são inúmeras, pois o mundo gira, e, no girar, as coisas precisam de ajustes. A questão é o peso que a separação, do que for, repassa para as nossas vidas.

Ele aceitou, até com facilidade, o tratamento. Bom começo para uma longa temporada, que iria se transformar em doída tentativa de resgatar o bravo combatente da doença.

No novo “lar”, sem muito contato com a realidade das pessoas comuns, construiu um mundo só seu...

Nos aposentos, através de uma pequena janela gradeada, observava, por muito tempo, a nesga de natureza que lhe era permitida. Mantinha-se sentado na cama, voltado para a janela, rodopiando com os seus pensamentos, e aparentemente calmo. Raramente, deitava-se para relaxar, ler um livro ou algo a mais. Sua postura representava estar quase que permanentemente em posição militar.

Nas manhãs, havia um período programado para o passeio pelo bosque da Unidade de Saúde. Aos internos ficava liberado o contato com o jardim, incluindo sadia caminhada. O local contém muitas árvores, o que permite gostosa sombra e lazer.

Seu ritmo de caminhar era vigoroso, com passadas largas, e trazia os braços cruzados nas costas, entrelaçando as mãos. De cabeça erguida, ia solene em direção ao nada. De quando em vez, voltava a cabeça para trás, por cima de um dos ombros, e dava enérgicas vozes de comando aos subordinados, considerando as árvores os seus soldados. Ali estava a sua tropa. Completava as ordens com o indefectível “hein?!”

Até que cansado, retornava ao quarto, dessa vez de cabeça baixa, dando ares de constrangimento.

A instituição militar a qual pertencia descobriu e tratou de corrigir grave erro.

Uma condecoração importante, merecida por direito, deixou de lhe ser dada enquanto na ativa.

Então, era momento de desfazer o equívoco, fazer-se justiça. Em decorrência, foi marcada a cerimônia militar para oficializar o preenchimento da lacuna. Foram convidados familiares e autoridades da área, além dos companheiros de farda, dos velhos tempos.

O pessoal de saúde mais próximo ao doente explicou o motivo do evento, antecipando, paulatinamente, o que seria realizado, para que houvesse compreensão do conjunto da cerimônia, ressaltando a importância, para justificar a necessidade do seu comparecimento.

Realizada a parte inicial, as derradeiras providências foram postas em prática, dentro da cortesia e das tradições que norteiam a conduta militar. Inclusive, não faltariam a formatura em pátio descoberto e a banda. Para complementar, foi programado um coquetel no salão nobre, sem bebida alcoólica, para fechar em grande estilo a solenidade.

O momento efetivo da cerimônia foi tenso! O homenageado atrasou-se. Mas após várias chamadas e conversas, ele compareceu. Trajando pijama e sandálias. Fazer o quê? Era o seu uniforme. Aliás, um pijama branco imaculado, impecável.

Postou-se no local marcado, colocando-se em sentido por toda a cerimônia. Ocorreram os discursos de praxe, mas ele declinou de falar, fazendo o sinal de mão característico de que seguissem à diante (o tradicional “segue o barco”). Preferiu calar-se. Na verdade, nem ficou definido se compreendeu na íntegra o que se passava. Devia estar confuso, apesar da “tradução” simultânea de uma das filhas.

Claro, que o momento mais emocionante foi a aposição da medalha no peito, pela autoridade de maior patente presente, tendo ao lado um subalterno conduzindo uma almofada, onde a caixa de veludo sobressaía!

Silêncio total! Apenas a batida compassada de um tambor. E talvez, somente, o coração do velho soldado estivesse fora do compasso, acelerado de emoção. Mas era difícil avaliar. Suas emoções rareavam no aspecto lógico ou de orientação.

Terminada a cerimônia, os presentes foram convidados para a confraternização no salão nobre, onde o agraciado seria cumprimentado. E, em seguida, deu-se o deslocamento para o local.

Aconteceu, inusitadamente, que o principal elemento da cerimônia “não se tocou”! Apesar dos insistentes chamamentos, ele não atendeu. Ao contrário, arrematou explicando-se:
- Não irei. Vamos agendar o próximo evento para outra data; agora preciso descansar.
E completou balbuciando:
- Se querem que eu vá, falem primeiro com o meu assistente-secretário. Depois verei o que fazer.
Perplexidade geral!

Da posição impassível, fez meia-volta, marcialmente, e se dirigiu ao repouso. Quebraram o silêncio o tilintar da medalha, agitada pelo caminhar em passo marcado, e o proferir de uns tantos “hein?!”, antes de entrar no corredor de acesso ao quarto.

Alfredo Domingos

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Pergunta capciosa

 
Sofrônico é um cara conservador. Seus hábitos são previsíveis e regrados. Não se afasta da rotina por nada. Desde que acorda até o sono da noite, cumpre um roteiro absolutamente programado.

Outro dia, Sofrônico resolveu ousar. Ao ter que pagar uma conta de energia elétrica, fugiu do tradicional, da caixa bancária. Entrou numa Casa Lotérica, no Centro do Rio de Janeiro, e procurou o guichê. Usando de polidez, para se certificar de que daria certo, perguntou:

- Senhorita, por obséquio, é possível pagar esta conta em “espécie”?

A resposta foi totalmente inesperada:

- Senhor, poder pagar, sim, mas eu não sei o que é “espécie”.

- Entendo, senhorita, mas com dinheiro posso pagar?

- Claro, fique à vontade – a moça encerrou o assunto, dando continuidade ao serviço.

Alfredo Domingos

Limpeza na casa e na vida


Passei os últimos dias fazendo limpeza. Nos armários e gavetas. As tarefas foram eliminar coisas inúteis ou sem uso e reduzir a bagunça. Revirei tudo na casa, no finalzinho das férias.

Utilizei como inspiração a lição deixada por Lena Gino: “Casa arrumada é assim: um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz...”.

A propósito, consultei um livro que trata deste assunto de endireitar, seja a casa ou a vida, “A Mágica da Arrumação”, de Marie Kondo, editora Sextante, e dali retirei boas dicas, sendo duas em destaque: “ficará surpreso com o número de pertences que perderam a sua função” e “mantenha exclusivamente as coisas que são valiosas para você”.

Não tinha a menor ideia do tanto que encontraria. Desconhecia a minha capacidade de armazenar papéis, fotos, objetos e roupas. Em decorrência, constatei que era muito apegado. A hora era de mudança. Abrir caminhos para os bons fluidos circularem. Deixar a casa mais leve e clean, como se diz modernamente. 

Imprimi rotina de combate. Considerei caso de calamidade própria. 

Acordava cedo, colocava bermudas, camiseta e sandálias de dedo. Era o uniforme de batalha.

Comecei por repintar os interiores, eu mesmo, usando estritamente cores claras. Repeti, em vários ambientes, a cor “açúcar cristal”, que trouxe a sensação de cômodos maiores, limpos e descomplicados, recomendada por alguém entendido em Feng Shui. Para citar uma alteração significativa, atrás da cabeceira da cama havia uma parede na cor bordô, pavorosa, que não sei como não mudei antes. Esquentava o visual do quarto e não trazia a sensualidade que um sozinho imagina obter.

Até a parte da cozinha foi “inspecionada”.  Em função disso, por exemplo, verifiquei surpreso o número enorme de canecas. Não estimava o tamanho da coleção. Para o quê?!... Sem contar a infinidade de panelões, panelas e panelinhas. Acho que fui dono de restaurante sem saber!

Em complemento, o fogão permaneceu fechado e a geladeira quase vazia, apenas com material para sanduíches. Havia necessidade de ser prático!

Deparei-me com boas e más recordações. Invariavelmente, a cada revirar de caixa ou de gaveta brotavam lembranças que me deixavam estarrecido. As expressões que mais usei foram: - Como? Não acredito!

Para apresentar uma situação inusitada, vale revelar que achei numa gaveta, entre as camisas de pouco uso, um vestido rosa, decotado, presente dado por mim a “ex”, Carol, pela qual, ainda, tenho grande saudade, depois de oito meses. Estremeci na base, quase uma vertigem. O vestido, quando no corpo, permitia mostrar com elegância parte dos seus lindos seios. Era uma mulher alta, de corpo magro, morena, cabelos compridos, que permanecia descalça, enquanto em casa, conduzindo uma presença incrível, marcante. Sobrava-lhe força interior, demonstrada por determinação de mouro, embora com extrema doçura.

Tamanho era o seu arrojo, que numa manhã cinza, não poderia ter cor diferente, à mesa, pegou carinhosamente a minha mão e bem baixinho disse:
- Estou incomodada, vou abrir a janela para outras paisagens, respirar ares renovados. Então, após esta xícara de café, irei embora. Entenda, por favor.   
Se eu tivesse de pé, teria desabado no chão!

Voltando ao achado, o quarto ficou tomado pelo perfume de Carol, parecia obra dos céus, e, atordoado, tive que fazer pausa na arrumação. Recuperar-me da emoção!

Não discerni se foi esquecimento, à toa, ou se foi proposital o abandono da peça, para que a chaga do amor ficasse sempre aberta. Contudo, seria improvável “esquecer” no meio das minhas roupas. A hipótese da intenção até que me animou. Lancei a pergunta a mim mesmo: - Será que resta chance de volta?...

Nota relevante: não tive coragem de me desfazer do vestido, tornei a guardá-lo; e fiz mais. Caprichei num embrulho com papel de seda, para tentar perpetuar uma das marcas da relação. Homem é bicho bobo!

Como sou ligado no ofício de escrever, verifiquei que possuía pastas e pastas de escritos. Há nove anos, no mínimo, junto textos terminados, faltando digitar, e outros por terminar, devendo empreender o derradeiro empurrão. Acontece de a história brotar e depois ficar faltando oportunidade para revê-la e considerar encerrada. Aliás, essa dificuldade é grave, pois uma ideia empacada impede que as emoções, as mensagens, etc., sigam os seus caminhos e atinjam a quem as merece. Ficamos com algo refreado dentro de nós, o que não é bom! Gastei dois dias selecionando, mas consegui reduzir a apenas uma pasta. Foi duro abrir mão de textos os quais considerava, antes, obras-primas, verdadeiras preciosidades. Que nada! Avaliei alguns como bem fraquinhos.

O capítulo das cartas é incrivelmente bizarro! Encontrei uma carta amarelada, esmaecida, com o parágrafo final rasgado pela metade, onde identifiquei, com muito esforço, no que sobrou, a despedida recheada da palavra “beijos”, até o rodapé, tendo desenhos de coração por todos os lados, de várias cores. Que enxurrada de bregueci! Eu e ela devíamos gostar da relação, devido ao conteúdo da carta, que descrevia com detalhes situações íntimas que tivemos. O problema é que deu branco na memória e não me lembrava da moça, e justamente o seu nome fez parte do corte do parágrafo, deixando como pista o início do nome – “Lu”. Pensei em inúmeros nomes sem associar à pessoa alguma: Luciana, Ludmila, Luana, Lucinda e tantos outros. Pesquisa em vão! Nenhum sentido. Imaginei que poderia ser um apelido, o que também não me levou à solução. Listei mentalmente as namoradas e, pelo incrível que pareça, conclui que não me relacionei com alguém que tivesse nome começando com “Lu”. A maioria, só de curiosidade, foi “Maria”. Várias Marias: Fernanda, Auxiliadora, Augusta, Cristina, do Carmo, Teresa, do Amparo, inclusive uma Umbelina, de longínqua lembrança e estranheza.

Ainda sobre cartas, deleitei-me com as juras de amor da adolescência. Tão intensas e ocas, ao mesmo tempo, que tangenciavam o ridículo! Em uma delas, aproveitava para sanar as minhas dúvidas de matemática. Quase não havia espaço para comentar sobre nós. Não pretendia uma namorada, pelo jeito. Esforçava-me em aproveitar a professora.

Nas viagens a serviço, correspondia-me com a minha mãe. Na releitura, agora, depois que ela faleceu, emocionei-me e revi ensinamentos e conselhos, pois ela era perfeita em relatar os assuntos familiares e tirar as suas conclusões, que fazem sentido até hoje. Notei quanta sabedoria havia embutida. Daí, a conclusão de consenso de que papo de mãe é inigualável!

Com respeito às cartas, aos documentos e a qualquer tipo de papel, insisti na precaução de não acumular, porque seria propiciar o mofo, a poeira acumulada e as outras consequências nocivas.

Bem, as cartas rarearam muito com a movimentação de e-mails e o uso de whatsApp e face, vindo a perderem valor, exceto aquelas especiais, que nos marcaram. Assim, de duas caixas atopetadas de cartas, mantive o irrisório número de sete, que também é cabalístico, o que faz sentido.

Há, porém, a parte poética relativa à carta, que ficou no passado, basicamente em dois aspectos: o contato com o carteiro (em algum momento, o carteiro mesmo anunciava quem era o remetente, pela repetição do envio) e a expectativa de receber a carta (importante acontecimento, já que as grandes confidências e revelações não eram passadas pelo rápido contato telefônico, mereciam detalhamento). Além disso, fazer carta era prazeroso e romântico.

No entanto, a etapa mais árdua foi organizar e peneirar os livros. O lado sentimental pesou muito, em função do apego gigantesco que pude constatar. Precisei interromper, de vez em quando, na busca de fôlego para me desfazer de uns poucos exemplares.

Tudo era julgado importante e assim a pilha da permanência somente aumentava. Dizia: - Este fica! Este também! Deste não devo abrir mão! Este é para guardar! Este preciso reler! E ia arrumando motivo para manter. No desenrolar, encontrei alguns não lidos e outros dos quais não me lembrava. Houve trabalho, meu amigo!

Livros são como filhos, dão um orgulho danado! Devo informar que pouco consegui neste quesito. Mantive quase todos os livros, muito devido a ter o hábito de fazer anotações nas páginas. Tento enriquecer o livro, para o meu uso e para o das pessoas que virão, com as minhas inquietações e opiniões, inserindo também comentários de críticos e pensamento de autores, no que cabe atrelar. Desta forma, cada livro passa a ser personalizado, adquirindo novas características.

A ação nas roupas e sapatos foi mais fácil. Ufa!

De cara, retirei do armário e das gavetas o total das roupas e sapatos, para depois resolver sobre o que não queria. Fiz a “montanha” para selecionar. Assim, não permiti que escapasse alguma coisa da triagem. Esta foi mais uma dica do livro de Marie Kondo.

Diversos motivos serviram para eu fazer o descarte. Camisas grandes ou apertadas. Camisas ditas sociais esquisitas, de colarinhos bicudos ou de mangas muito compridas. Calças fora da moda, algumas largas, que davam dois de mim dentro. Casacos inúteis em relação ao nosso clima. E paletós de lapelas e ombreiras imensas, parecendo os típicos dos mafiosos.

No ramo dos calçados, havia sapatos embolorados, tênis cambetas, um até sem cadarço, porém, soube aproveitar a maioria, que dava condição de eu sair por aí. Refletindo, conclui que usei nos últimos tempos um pequeno número de calçados e que nem precisava possuir os demais. Comprovei a máxima de que usamos o que gostamos ou aqueles que são confortáveis.

Enfim, percebi que possuía um guarda-roupa praticamente obsoleto, precisando ser renovado. Triste, mas boa conclusão para promover novos tempos!

A menção acima de partir para novos tempos tem a sua propriedade! Não apenas no vestuário, mas em tudo. O passado deve ficar para trás, o que é óbvio, mas, infelizmente, lembrado raramente. Por que não aproveitar a ocasião para dar reviravolta geral e reformular conceitos, rotinas, modo de encarar a mim e as outras pessoas, sair do meu quadrado e penetrar em quadrados desconhecidos, para ver no que dará?

Terminada a limpeza, fiquei com a noção de que a consequência principal das coisas terem diminuído foi o meu crescimento como pessoa. Evolui junto com o espaço que obtive. A casa passou a ser mais minha, pois alcancei largueza, trânsito com fluidez e o resgate das coisas com facilidade. Inclusive, ganhei liberdade para as ideias. Incrível, mas está ocorrendo!

Recomendo que experimentem a transformação que empreendi, porém, do jeito de vocês. Saiam da acomodação e deixem a roda girar na direção do novo. Tentar não custa. E se não der certo, pior não ficará. Haverá algo positivo, na certa!

Alfredo Domingos