sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Sonhar não custa nada e faz bem

Lufa-lufa, corre-corre, confusão, atropelo e mais outros tantos substantivos podem indicar a complexidade do nosso dia e a agitação do nosso cérebro, embora, na maioria do tempo, seja o verbo que nos inferniza, designando tarefas.

Vivemos num encadeamento de obrigações, incluindo a rotina de trabalho e, até, a diversão. Ademais, há a íntima relação com as redes de comunicação, que absorvem a maior parte das atenções.

Nos raros instantes de não se fazer coisa alguma, é permitido, e também salutar, sonhar. Um bom instante para isso é o curto lapso de tempo, antes de pegar no sono. A imaginação voa e o torpor da sonolência vem nos abraçar.

É imensamente prazeroso levantar voo, permanecendo no mesmo lugar, com os pés no chão, pensando em passagens agradáveis, chamando para nós aquilo que oferece prazer. Estudos de neurocientistas apontam que sonhar acordado é benéfico. O sonho aceita tudo, ainda mais se engendrado pela nossa engenhosa cabeça. Igual a texto no papel. Nem precisa ser verossímil, sensato e embasado. Ocupa a seara do poético. Não necessita de início, meio e fim. Flui ao gosto do sonhador. Adapta-se conforme a sua vontade. E o melhor é que sendo do agrado atrai o bem-estar, quando estamos em sintonia. Dá a ideia de superpoder, com o qual podemos comandar o presente e o futuro.

Quando algo me aborrece, além de apurar a respiração, peço socorro às ideias, deixando-as soltas, para que a paz retorne. Invento. Crio histórias do meu jeito, normalmente maravilhosas e bem-sucedidas, evidentemente. Acabo dando risada e experimentando prazer. Será uma forma de terapia? No meu sentimento, sim. Escolho apropriar-me de “leveza” e de “o menos é mais”, no cumprimento de conselhos tão atuais, visando estabelecer um “clima” favorável aos devaneios. Devanear faz bem.

Busco personagens simples, que julgo serem interessantes. Boas pessoas para que eu fique bem cercado. Não imagino maldades, traições ou mortes. Os personagens, apenas, somem, não mais sendo lembrados, a partir de saírem do contexto. Desvanecem-se. Quando estão na roda-viva dos acontecimentos, são atuantes, criativos e bons. Procuro atrair a bondade, trago-a para mim, para me acompanhar.

De repente numa história, sem fim por enquanto, pois o roteirista sou eu e estou vivinho da silva, destaquei um personagem do restante dos participantes – Alice. Companheira-namorada. De nome doce ao pronunciar e de imaginar, ligado à nobreza, segundo os estudiosos de onomástica, e ao mundo lúdico de Lewis Carroll. Faço conexão direta entre a Alice criada por mim e a do País das Maravilhas, de Carroll, embora as idades e as épocas sejam completamente diferentes. O coadjuvante número um sou eu, que transito no entorno de Alice, a protagonista. Preferi assim.

À volta de Alice, resolvi inserir pessoas diversas daquelas das minhas amizades reais. Vou ao encontro de outras cabeças. Penetro no novo, uma vez que o sonho abriga qualquer conceito de comportamento, ou até nenhum conceito. Gente que seja de seara alheia à minha, ligada, habitualmente, às artes, às atividades esportivas, à gastronomia e ao lúdico. Busco trajetórias do gênero blasé cujos assuntos me atraiam e gerem conteúdo com característica de sonho mesmo. Penso nos urbanautas (insistentes pessoas andarilhas das cidades, caminhantes sem freio); nos cozinheiros das horas vagas, mestres-cucas amadores; nos violonistas ou pianistas solitários, que dão audições fechadas, pra pouca gente, nos sábados à noite, tendo como ouvinte atenta a chuva na vidraça; e assim vou arrebanhando pessoas de vários gostos e origens, para somarem com os seus comportamentos.

Ah! Na invenção, Alice possui uma filha, de outro homem. Moça casada, que mora fora da nossa cidade. Com a vida resolvida, não nos trazendo incômodos.

Programo, às vezes, uma viagem até a cidade da “enteada”. Passagem rápida, com algumas atividades como caminhada, escalada, etc. Faz parte do lazer pra relaxar. Sair da rotina.

Conhecemo-nos da maneira mais trivial possível. Esbarrão na saída do mercado. Desculpas dos dois, e convite a ela se queria companhia até a casa. Aceitou, desde que a deixasse na calçada, em frente ao edifício, evitando invasão. Concordei. Troca dos números dos celulares. E, dias depois, marcado o primeiro encontro. A partir daí, somente alegrias!

Alice é campeã! Gente fina. Cordata. Paciente. Fala mansa. Disposta para as aventuras. Elegante no vestir, sem exageros, e, principalmente, de gestos gentis. Eu precisava dourar a pílula da personagem! Sem o quê não haveria graça.

Ela nunca teve um parceiro fixo, como se diz. O que pensou que daria em amor definitivo durou o suficiente para ganhar a bebê. Depois, findou num estalo. Não sendo necessário tecer detalhes.

Os meandros do sonho louco permitem comparação com a feitura de refeição de fim de semana, onde os panelões e as grandes quantidades têm espaço. Colocamos ali um pedaço substancial disso; quilos de material com sustância; colheres daquilo; pitadas daquilo outro; bastante coisinha boba e inofensiva, que não matará os comensais; raspas de coisa consistente; algo que irá dar cor; folhinhas verdes para proporcionar frescor e agradar aos olhos; e, se houver fôlego, conseguimos uma travessa refratária para gratinar o que for sem graça.

A escrita, ainda que mental, pode ter a concepção inventada acima. Sem problema. Cabe tudo no panelão da cabeça, assim como na gororoba que o fogão produz.

No seio disso tudo, lanço mão de uma mochila. Carrego-a nas costas, e me utilizo das “facilidades” que ela guarda. Seu papel é especial. Dali, tal e qual os recadinhos do realejo, retiro intervenções para enriquecer o sonho. Coisas dos tipos: cada um morando na sua casa; dirigindo o seu carro; fazendo suas compras; e administrando seu dinheiro. Somos praticamente da mesma idade, para não haver lacunas nos interesses. Ela professora universitária, de História, e quanto a mim deixo em branco. Sou o que sou, quase um anônimo para o “roteirista”. Risos!

As facilidades evitam conflitos. Sabemos como eles atrapalham. Dessa forma, não abro mão da mochila para a felicidade geral do hipotético casal.
Há dois professores, uma professora – os três da mesma universidade da protagonista - e a prima, que fazem parte do grupo mais íntimo. Alice tem irmã, mas não participa muito do convívio. Por motivos particulares, mantém-se um pouco afastada.

Os dois professores trazem a nós boas diversões, de tipos diferentes.

Um dos professores é pianista, fora da sala de aula, praticamente profissional, tão dedicado que colocou um piano de cauda, daqueles famosos, na pequena sala de casa. Brinda-nos em dois fins de semana, pelo menos, no mês, com saraus caprichados. Alguns tira-gostos, taças de vinho, cervejas, e faz a festa! Sujeito simpático, divertido, com vários casamentos nas costas ou nas lembranças. Esforça-se em ser bom anfitrião, uma vez que vive sozinho. Faz pequenos intervalos entre as músicas, para contar histórias, narrando conquistas, algumas bem-sucedidas, outras nem tanto, e também casos hilários. Ri de si mesmo. Há suspeita de que boa parte das conversas é inventada. Porém, isso não nos incomoda.

O outro amigo é sociólogo, professor de ideias progressistas, porém, é com a culinária que faz a sua praia. Possuidor dos mais diversos utensílios, que busca temperos, bons ingredientes e receitas refinadas. Frequentador de feiras e de mercados alternativos. Brinda-nos com belos pratos, na sua área, no apartamento térreo, ou deixando-os na portaria de Alice, de surpresa. Entusiasta de passeios por matas e por cantos escondidos, recolhe frutinhas e folhas comestíveis, fotografando curiosidades da natureza. Calado, desconfiado, mas com boas sacadas e de uma prestimosidade acima do normal. Sem casos amorosos para contar ou parcerias para revelar, reserva-se na sua intimidade.

A professora, com nome marcante, Joana D’Arc, traz, ao lado do marido, a face glamourosa da vida. A participação derrama o luxo no meu sonho, por meio dos grandiosos salões da residência, em Copacabana, endereço de frente para o mar, onde boa parte dos movimentos da cidade ocorre. Das passeatas à festa de final de ano, somos convidados para assistir, literalmente de camarote, aos grandes eventos do Rio. Janelões, praticamente, jogam-nos na areia da praia. Comparecemos todos. Geralmente, brindamos o momento com especial espumante e iguarias servidos por impecáveis garçons. Para completar, no campo das maravilhas, o casal coloca à disposição bela casa na Costa Verde do Rio de Janeiro, dotada de lancha, piscina e a indefectível churrasqueira, além de acomodações confortabilíssimas. Querer mais? Por quê?

O tom cômico, hilário, precisava fazer-se presente. Pronto! Aí entra a prima. Figura sem lenço nem documento, excessivamente espirituosa, tendo a comicidade como modo de vida. Viu-se sem o  companheiro, sem entender bulhufas. O camarada avisou que iria à esquina comprar cigarros. Para brincar ela rememora que era de uma marca antiga – Hollywood – de tradicional embalagem vermelha. Afirma que tem ódio deste nome, pois traz à memória o perrengue que ela passou, pois o homem, malandro, nunca mais voltou. Procurou-o em todos os cantos, inclusive hospitais e Instituto Médico Legal, sem sucesso, no entanto. Desistiu. Não encontrou apetite para fazer outra união.

A vida seguiu e se manteve dona do nariz, “sem estorvo”, como gosta de dizer. Assim, teve aulas de circo, de sommelier, de barista, história da arte e assim vai sem brecar a curiosidade e o arrojo. Parece-me que as invenções são propositais para passar alegria e distração às pessoas. Ah, ia esquecendo-me: ultimamente, faz curso de montanhismo. A idade, contudo, apenas para nos situar, passou dos cinquenta há tempos. Integrante de todas as ocasiões seja para casamento seja para enterro. Aparece sem avisar. Chega chegando. Convoca o pessoal da casa basicamente para três coisas: jogo de cartas, preparo de comidas e muito papo, sendo que este rola recheado de pitorescas situações, para não dizer doces mentiras. Outro dia, adentrou o apartamento de Alice com um polvo pelos dedos, mais vivo do que morto. Lançou-o sobre a pia da cozinha e falou:

- Mais tarde, trataremos deste aqui, enfiando o dedo indicador na carne do molusco. Fazê-lo é minha especialidade!

Bem, outros personagens caberiam na história, assim como poderia tecer tramas paralelas envolvendo as pessoas já citadas, mas pecaria pelo cansaço em pontuar ações e reações do dia a dia. Penso que dei a amostra do tema que queria abordar. Está resolvida a questão!

Gente, tudo isto é sonho. Doideira. Mas faz um bem danado! Dessa forma, uso de escapismo, em alguns momentos do meu dia atribulado, para ser gentil comigo mesmo, na tentativa sadia de misturar a dureza da realidade com o bem-bom do sonho. Trata-se do pilates dos pensamentos, a reviravolta do perfeitamente real em prol da fantasia. Para nos ajudar, Fernando Pessoa deu o recado: “O homem é do tamanho do seu sonho”. Claro, que ele comparava o sonho, naquela sua época, com o que se quer conquistar. Mas mesmo assim, vale o conselho do poeta, aqui na nossa conversa.

Agora, deixo a minha dica: sonhe. Bastante! Tudo é possível na imaginação. Não se avexe, não. Tudo se passará com você mesmo, com os seus botões, no fundo da alma.

Alfredo Domingos
(consulta ao texto "As vantagens de sonhar acordado", de Claudia Hammond, da BBC Future)