terça-feira, 25 de junho de 2019

Fibroses



Encontramos fibroses - cicatrizes, na alma, nos relacionamentos, pelo corpo, e também no coração. Neste, pode ser cicatriz física, na sua morfologia, e no sentido figurado, quando alguma coisa traz sofrimento, marcando-nos intimamente. 

É comum as pessoas dizerem algo parecido com isto:
- Senti tanto tal coisa que a cicatriz deixada não mais se desfará.
Ou, ainda:
- A atitude de Fulano me deixou profunda cicatriz.

Pois é, mas as coisas sentimentais ou mesmo palpáveis não funcionam assim, integralmente. O que parece ser para sempre e cala fundo, às vezes, traz surpresas, e boas.

As fibroses do coração, as físicas, são tratáveis. Há exames, procedimentos e medicamentos eficazes.

As cicatrizes sentimentais vão e voltam. O que hoje é o fim do mundo, amanhã se transforma em o melhor dos mundos. Mudam os agentes, mudam as circunstâncias, mudam as ocasiões.

No dia a dia atribulado em que vivemos, no meio de relações cada vez mais difíceis, são muitos os atropelos e as decepções, com oportunidades para recrudescimento de inúmeras chagas.

Contracenamos em palcos suscetíveis, nos quais o melindre tende a prevalecer, testando permanentemente o equilíbrio dos integrantes do elenco. A vulnerabilidade é latente, proporcionando momentos de plena euforia ou de outros de, até, depressão. 

Essas atitudes antagônicas não ficam impunes. Deixam rancores ou amores indestrutíveis, ao menos momentaneamente. Considerando os desafetos, eles ocasionam cicatrizes: ora rasas, ora significativas.

Mas e a vida? Esta segue reta, apesar de tudo, sendo linda e pulsante, vamos combinar que na sua maior parte. Resta-nos abstrair dos reveses e abraçar as bem-aventuranças. Fica a boa receita!

Alfredo Domingos

quarta-feira, 19 de junho de 2019

A mulher da fotografia


Estava em um sebo, na Rua 1º de Março, Centro do Rio, num descanso de almoço, fuçando os exemplares.

Deparei, de repente, com "Anarquistas, Graças a Deus", da Zélia Gattai, edição de 1979.

Raridade. Foi muita tentação. Tive que comprar. O livro está esgotado, pelo o que sei.

Ao chegar a casa, à noite, foi que encontrei a foto, em uma página qualquer.

A foto, 3x4, em preto e branco, esmaecida, de meio corpo, é de uma mulher de 30 a 40 anos, Não consigo bem avaliar a sua idade. Talvez a sabedoria feminina seja mais precisa.

Possui sorriso leve, sem semblante marcante. Ela usa um  blusa e cabelos antigos, tipo anos 1960/70, aquela com gola pontuda, em estampa discreta, cores claras, e aqueles com o corte lembrando as mesmas décadas, de acentuado repartido do lado esquerdo da cabeça. Não estão visíveis brincos nem pintura no rosto. É só isto de concreto. O resto fica por conta da imaginação.

Arquitetei uma história, para chamar de minha.

Comecei com o meu interesse pela figura da foto, pois deitado na cama de solteiro, de madrugada, rolando de cá para lá, não a tirava da cabeça, e dos dedos. Revirava a imagem como se fosse possível desmascarar o seu interior. Uma absurda curiosidade tomou conta de mim. Quem seria ela? Fazia o quê? Solteira? Casada? Onde morava?

E outras perguntas tomaram corpo: por que a foto estava no livro? Esquecimento? Para marcar a página? Teria sido colocada por ela ou por outra pessoa?

Meu Deus! Quantas dúvidas!
Virou obsessão. Não! Mais que isto. Desatino!

Cheguei a frequentar o tal sebo. Na hora do almoço e no momento em que deixava o trabalho. Sabe qual era o intento? Que ela aparecesse. Juro. Sei lá como. Rompendo a porta, decidida, linda, mesmo contando com o tempo que passou, desde o clique que marcou a pose. Cheguei a imaginar que surgiria de um livro qualquer, em carne e osso, igual ao gênio da lâmpada. Até, investiguei em outros livros. Será que alguém saiu distribuindo fotos pelos livros em exposição?

Coitado de mim! Desavisado sonhador.

Ainda não cansei. Cumpro a rotina, ou sina, há dezoito meses.

Em que estado me tornei. Um esperançoso do nada, de ninguém.

Provavelmente, uma história sem fim. A não ser que eu entregue os pontos. Aborreça-me desta espera infindável, tal qual a história.

A foto, porém, será para sempre. Mantenho-a no interior do livro, no seu prefácio, colada, com o sorriso enigmático que não me deixa.

Alfredo Domingos

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Nossa Senhora



Para recorrer a Nossa Senhora,
Não tem maneira, nem hora.
Quando a aflição é tamanha,
O choro deixa de ser manha.

O amor é pra valer.
Vem lá do fundo fazendo arder.

Peço a sua intercessão junto ao Pai.
Abra por mim o coração.
Use o amor de mãe, que pra tudo dá solução.

Consiga o meu pedido realizar,
Que o mais vou subestimar.
Terei de sobra gratidão,
Beijarei pra sempre a sua mão.

Mão que para o mundo se volta,
Em socorro dos aflitos que fogem da derrota.

Alfredo Domingos

Singradura



O navio está atracado ao cais.
Preso a terra, seguro.
Aos poucos as espias vão sendo liberadas.
Até que o navio está solto, livre.
Ele fica sob máquinas, com controle do seu destino.
Vai ganhando autonomia, cumprindo sua rota.
Cruza mares espelhados e mares revoltos.
O comandante o conduz na busca de melhores destinos.
Chegará aos portos quando lhe aprouver ou necessitar.
Assim, somos nós.
Primeiro presos à mãe.
Ao ganhar idade, vamos nos soltando.
Nossas cabeças passam a nos guiar.
Passamos por algumas situações calmas e por outras nem tanto.
Pegamos ventos serenos, mas, também, enfrentamos vendavais.
Atracamos em muitos portos, uns seguros, outros não.
O conhecimento e a sabedoria vão fornecendo as ferramentas.
Operá-las é por nossa conta.
O resultado é fruto.
Pode ser doce, gostoso.
Pode ser amargo, detestável.
Tal qual o navio, que enferruja e fica obsoleto,
Somos nós ao entrarmos na velhice.
O estaleiro repara o navio.
O médico restabelece a saúde.
Mas o navio e nós paramos um dia.
Viramos todos sucata.

Alfredo Domingos

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Solitário, no meio de todos



O fotógrafo Julio Bittencourt, no sábado, dia 4 de maio de 2019, teve alguns dos seus trabalhos colocados no Segundo Caderno de O Globo, página 2. O tema das fotos me interessa, assim resolvi conversar sobre ele. 

Dentre as fotos escolhidas para comentar estão duas de várias pessoas, no vagão do metrô de Tóquio e uma contendo verdadeira multidão, numa piscina na China.

O título acima, deste texto, reproduz bem o que quero comentar. Embora acompanhados, estamos nos acostumando à solidão. Rodeados de indivíduos, assumimos um vastíssimo isolamento. 

Nas grandes cidades, as residências estão cada vez menores, assim como os espaços de trabalho estão compartilhados, porém, isolando o indivíduo no seu casulo, o que reduz a companhia e a troca de palavras e de sentimentos. Aí, entram, de chofre, o celular e o iPad. Ocupando o vazio, que não existia, mas criando uma fuga para novos locais e pessoas, fora dali, embora sejam importantes veículos para a comunicação.

No metrô de qualquer cidade, a cena mais comum é os viajantes estarem sós. Os grupos de conversadores são vistos em minoria. Estão indo ou vindo de algum lugar para outro, quase sempre com suas cabeças funcionando, longe daquela circunstância. O celular ocupou muito dos espaços mentais pensantes. Deixamos a condição de vagar com os pensamentos, para produzirmos sonhos e castelos. Estamos passando por situações de vazio, mas preenchendo-as com coisas e assuntos alheios, globalizados e passageiros. O novo está difícil! Repassam-se cliques e conversas, sem o devido proveito, sem emitir opinião séria. O pitoresco instalou-se. O que não se enfrenta em troca de risada sem graça? Lá quero conhecer o prato do qual você fartamente se abastece no restaurante da moda? Não preciso conhecer o filho da irmã da namorada do sobrinho, que acabou de nascer, ainda tendo que concordar que o pequeno é a cara da avó. 

E assim, vamos tropeçando nas cabeças alheias que produzem matérias que não nos interessam.

E as relações próximas como ficam? E o companheirismo e a troca de confidências? Isso tudo ficou para as calendas gregas?

Alfredo Domingos