quinta-feira, 27 de outubro de 2016

O Velho Marinheiro

Persiste a antiga amizade entre mim e Zoroastro, um velho marinheiro, de extensa sabedoria. Pernambucano, que com dezessete anos fugiu de casa para “servir” à Marinha, é dono de incontáveis histórias. Umas reais outras inventadas, mas todas interessantes.

Primeiro, é salutar atentar para o termo “servir”, pronunciado constantemente pelo marujo, que infelizmente está em desuso, démodé.

As pessoas atualmente “usam” os outros ou as instituições, porém, raramente servem a alguém, com desprendimento. As amizades, via de regra, são baseadas em produzir ganhos, de toda ordem.

Zoroastro veio do Nordeste, com poucos recursos, munido do intento de pertencer à Marinha de Guerra. Conseguiu. De aprendiz, oriundo da Escola de Santa Catarina, após ir parar no Sul, deslocando-se do calor para o frio, chegou a suboficial, cumprindo bela carreira, tendo passado por vários navios e organizações de terra.

Acaboclado, forte de corpo, fumante de indefectível cachimbo, como verdadeiro “lobo do mar”, faz fisionomia de pensador e profere acertadas impressões, advindas da longa experiência, curtindo a condição de encontrar-se na reserva da Força. Afinal, com três casamentos nas costas e quatros filhos, além da vida marinheira agitada, possui conteúdo para dar e vender.

Nos encontros no bar do “Bigode”, na esquina lá da rua, muita coisa é posta na mesa, junto com a cerveja e a batatinha calabresa, especialidade da casa.

No ir e vir do papo, num fim de semana morno, “Zorô” quebrou a monotonia com um pensamento arrasador. Disse-me assim:
- Camarada, que você me perdoe, mas estive pensando, cá com os meus botões, e cheguei a uma conclusão.

Nisso, fez pausa, deu uma golada na cerveja, deixando o copo pela metade.

Pigarreou e continuou:
- Vou logo ao assunto. A vida da gente transcorre igualzinha a de um navio.
- Explico:
- Quando se morre, fica tudo pra trás. Acabou-se! Aquilo que pensávamos ser nosso, no que tínhamos amor, já era! Foi! As mulheres. Os filhos. As dívidas. As tranqueiras com que entulhávamos os armários. Os livros estimados. As cachaças que bebemos. Até as minhas medalhas. Acabaram-se!
- Com o navio é o mesmo. No momento da partida, de suspender de um porto para outro, quando as espias (os cabos que prendem o barco) são retiradas do cais, o cordão umbilical atado à vida comum é cortado. Passamos a viver o mundo somente de bordo. Com os chefes e companheiros. Está me entendendo? Não há imbróglio que siga mar adentro, como a sogra pra aturar, os filhos pra educar, as contas pra pagar, o proprietário do apê pra aporrinhar, etc. e tal. Sem falar nas madames, que por um tempo descansam de nós, e o mesmo ocorre conosco, em relação a elas.
- Faço a comparação das duas situações, nem sei se cabe, mas sinto assim. As duas coisas produzem um corte violento. Uma acaba com qualquer projeção e a outra liquida as pendências de terra, ao menos temporariamente. Ficamos aliviados por um período. 

De novo, uma golada de cerveja. Copo vazio.

- A única compensação é que no navio estamos vivos e ao voltar a casa é uma festa só! E prosseguimos, inclusive com os aborrecimentos! Porém, amigo, temos uma certeza: estamos aqui, firmes, de marré deci. Graças ao Divino!
- “Bigode”, mais uma “cerva”. Esta já deu!
- Ah, entendi! – complementei.

Alfredo Domingos

Mulher-interjeição



Aprendi, lá atrás, sobre a interjeição. A gramática diz que se trata de expressão apresentadora do nosso estado emotivo. Reação pura, sem rascunho. Não está inserida nas classificações clássicas das palavras. É um vocábulo-frase. Seja ela de admiração, dor, impaciência, espanto, dúvida, alívio ou outra reação qualquer. Pode ser representada por um tico de palavra ou por duas ou mais palavras.

O maneiro é que a interjeição exprime muito com pouco recheio. Por si é uma verdadeira oração. Vai direto ao tema sem delonga. O interlocutor ou leitor capta de imediato a mensagem, mesmo que o motivo tenha sido extenso e complicado.

A nossa secretária na cozinha da fazenda usava “Opa!” pra tudo. Era assim:
- A comida está pronta, Arminda? Aí vinha a resposta: - Opa!
- Que calor está fazendo, hein, Arminda? De novo: - Opa!
- Vou ao comércio, precisa de alguma coisa, Arminda? Nesse caso a contrapartida era diferente: - Opa! Tenho de ver.

Bom, já deu para acreditar que a reação era da mesma maneira, todo o tempo.

Mas, na realidade, esta história da interjeição tem outra motivação. Quero conduzir o barco a outro porto.

Viro e mexo, acabo reportando-me a Violeta Bacamarte, reconheço. Nesse contexto, lembro-me dela de cabeça baixa na máquina de costura ou conduzindo a agulha, sentada no sofá, ao largo da passagem do furacão, que é uma casa, à noite, com cinco pessoas que têm interesses e personalidades diversas.

A criatura é ensimesmada ao extremo. Calada, até quando não deveria. Afirma que consegue sucesso dizendo nada. Melhor do que meter o bedelho.

É daquele tipo que dá uma boiada para não se intrometer em confusão. Relega, positivamente, a entrada em qualquer querela.

Não se trata de ser desprovida de opinião, não. A preferência é pela posição de ouvir muito mais do que falar. Costurar com as palavras não é do seu figurino, muito menos tecer colchas de “disse me disse”. Isso ela deixa para o companheiro, Túlio Bacamarte, que este, sim, é palavrista de primeira hora, nosso escrevinhador, que trazemos no bolso para deleite em vã ocasião; apaixonado contumaz por um pedacinho de papel, de modo a versejar, ou por uma conversa sem pressa para terminar.

Voltando à interjeição, pois chega de tergiversar, Violeta é chamada pelo marido de “mulher-interjeição”. O enredo toma corpo a partir da troça do parceiro.

Chega o poeta em casa, ansioso para deitar falação, encontrar eco, obter parceria, contar sua façanha diária, e encontra, invariavelmente, a mulher debruçada sobre a costura, concentrada, produzindo maravilhas.

Ele agarra a palavra e não solta. Desfiando, com detalhes, a meada em que esteve enrolado ao longo do dia.

De quando em vez, pergunta: - Está entendendo? – O que você acha? – Fiz bem?
A resposta não sai do padrão, mudando apenas a forma de expressá-la.

Ora Violeta responde com suspeita “hum!”, ora alivia-se deixando escapar um “eh!”, mais adiante traduz admiração usando um “ah!”, também se socorre do “tomara!”, para indicar um desejo, e, já no final do diálogo, que foi praticamente inexistente, arremata com uma locução interjetiva, ao defender-se da acusação de que não está participando “ai de mim!”. Mas cá pra nós, na maioria das vezes, emite um conciso “hum!”, que resume tudo e não compromete.

Túlio não se emenda! Sempre reclama de Violeta, mesmo sabendo ser a companheira de poucas palavras. Até porque, ela argumenta que, falando, reduz a possibilidade de errar ou de ser mal interpretada. O jeito particular não significa desprezo. Na verdade, o bom andamento da costura depende de atenção redobrada, para que não haja erro no traçado da linha e na construção da arte, além de ser o SEU MOMENTO, restritíssimo.

Cada um com o seu modo de proceder. Por exemplo, Túlio faz o seu vaivém noturno, em casa, agarrado no radinho, para saber das últimas que estão no ar, principalmente no campo do esporte. Talvez o som incomode. “Psiu!” Não espalhe, OK?

Alfredo Domingos
(o autor apresenta as interjeições, destacadas pelas aspas, valendo-se de um texto)

Admirável São Francisco Nosso!

 
Fonte da imagem: www.franciscanos.org.br
Obra de Nelson Porto, pintor brasileiro (1950-1989).

As cores principais são telúricas, exceto a maçã vermelha, que representa o pecado, a perdição, fazendo o contraste.

Árvores e flores reduzidas no tamanho para apenas adornarem, sem marcar o conjunto.

Montanhas. Talvez de Minas. Talvez significando as dificuldades da vida. Os altos e baixos.

Casinhas modestas, como o nosso povo. Posicionadas ao fundo, distantes no acesso e no sonho de termos um teto.

São Francisco! Simples. Pés ao chão. Batina também da cor da terra. Alto. Figura quase centralizada, marcante. Um divisor da natureza, tendo as casas e as terras sob si.

Um elemento em destaque: a sua cabeça. Em forma de coração! Amor para todos! Cabelo e barba fazendo o contorno.

A pomba gigante. Linda! A paz está com ela e por meio dela para aproveitarmos. Belo simbolismo! Parece ser tocada pelo Santo, levemente.

E a visão através da janela, indicada pelo arco desenhado acima. A poesia a distância. Observada. 

Oração do Santo para ajudar a pensar. Fazer sentido, nem que seja com alguns trechos:
- as trevas virarem luz;
- a ofensa virar perdão;
- o ódio tornar-se amor;
- amar para ser amado;
- dar para receber; e
- buscar a vida eterna, mesmo sendo após a morte.

A concepção da arte não encerra o sonho do pintor-poeta. A janela está aberta para a reflexão sobre dois sentimentos básicos: o perdão e o amor (ambos constantes da Oração).

A PAZ encimando tudo, imensa na caracterização, usando o símbolo bíblico que é a POMBA, num único rasgo de cor branca dentro de um marrom praticamente total, sombrio.

Pensemos, então, na força da irmandade pregada por São Francisco. E mais que pensar, pratiquemo-la.

Alfredo Domingos

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Momento de reflexão



(o pingar constante de uma torneira dilacera os nervos)
(atua aos poucos e repetidamente)

“No Brasil, o que nos assola não é o grande mal. O perigo aqui é o pequeno mal. O mal está no mínimo.”

Este texto fez parte do excelente artigo de Arnaldo Jabor, no O Globo, Segundo Caderno, de seis de setembro de 2016.

Impressionei-me pela boa concepção do texto, porém, principalmente, pela escolha oportuna do momento para tratar do assunto. O cerne da escrita ocorre em tempos turbulentos, mesmo depois da solução da questão do impeachment da ex-presidente Dilma. Tempos esses esperados para voltarmos à calmaria política, o que nos levaria a certa paz para a economia entrar nos eixos e para resolver problemas emergenciais.

Mas, o tema de Jabor faz um alerta. Sinaliza para problema nas entranhas, que corrói o íntimo da sociedade, em todos os seus empreendimentos, de forma quase despercebida, embora feroz.

Estamos no reinado da picuinha, da implicância intermitente, da desilusão a cada esquina, da euforia superficial, de hora pra outra, do questionamento sem resposta, do encurralamento, do é assim e pronto!
Perguntamos inocentes, desavisados: - Cadê a lei? Qual o decreto? Onde está o respaldo?

Não há nada sobre isso. As tratativas são nas sombras, como é moda dizer. Entre uma caçada e outra ao Pokémon. Às escondidas! Mesmo que se trate de assunto votado no Congresso, a sua deliberação baseia-se num estalar de dedos, no que é chamado de fura-pauta.

O rumor é ferramenta dos bobos. O ladino esgueira-se. Consegue sucesso dos intentos sem alarido. O incompetente e inocente grita, esbraveja, arma barraco, uso o destempero. O sabido é polido. Lança mão de artimanhas. Fala ao pé do ouvido. Tapa a boca para que as palavras não sejam percebidas pela leitura labial.

Daí, todos ficam sabendo somente quando a bomba estoura. Porque a ideia matreira saiu da bolação de poucos. Então, funciona assim: o que prejudica ou favorece a maioria é decidido pela minoria? Respondo: - Exatamente!

O bullying bem representa essa ação sub-reptícia, pelos escaninhos, ressaltando a audácia de zombar em equipe, com o amparo de muitos, e notadamente usando da insistência, num processo desenvolvido rotineiramente, e em todos os momentos.

Não aparece na execução do bullying um único articulador, que assuma sozinho a autoria. Há sempre um bando, para que a responsabilidade seja diluída e a graça surja, provocando o divertimento geral; excetuando-se o atingido, claro!

A malvadeza está em esgotar o ofendido, aos poucos, persistentemente. Por isso, às vezes, vemos tragédias decorrentes, envolvendo abandono de colégio, sumiço de casa e outras coisas até mais violentas.
Voltando ao Jabor, entendo que as grandes desventuras são raras. O mal terrível surge de vez em quando, e vem arrasador. O mínimo, como ele diz, é que come como traça, infiltra-se, abre fendas, e nos desespera ao final do percurso, constantemente.

A loucura está no pequeno, que se torna gigante pela insistência e pela assiduidade. Não se acaba com um tabefe, um peteleco. Isso não basta! É necessário usar os mesmos métodos. Com esperteza. No silêncio. Sorrindo, se puder. Cerque, encurrale, fatie e extermine!

Alfredo Domingos