sexta-feira, 31 de julho de 2015

O Poema está morrendo...


 “Vem, noite antiquíssima e idêntica,/ Noite Rainha nascida destronada,/ Noite igual por dentro ao silêncio, Noite/ Com as estrelas lantejoulas rápidas/ No teu vestido franjado de Infinito”.
(versos do poema de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, “Dois excertos de odes”)

O Poema anda embolorado,

Encostado numa parede fria de sentimentos.

Abandonado numa gaveta, com falta de ar,

Envelhecido e esquecido.

Ao sair, manca e reclama.

As palavras não têm eco,

O andamento ressente-se de empolgação,

O conteúdo escorrega pelos ralos,

O alvo não é atingido.

Sua dosagem de vitamina D está baixa,

Falta sol, claridade.

Sangue quente circula escasso,

Necessita de urgência para a vida.

Urge a volta de Pessoa, Vinicius, Manoel de Barros, Mário de Andrade,

Tantos!

Salvem o Poema!

Alfredo Domingos

sexta-feira, 24 de julho de 2015

A dona dos que se foram


Carminda carrega em si um ar de sétimo dia. Natural dela! Parece que uma coisa atrai a outra. Desde mocinha, adora um enterro. Considera evento de grande monta.

Mas há uma particularidade importantíssima: empenha-se em reservar somente para ela os defuntos. Intenciona não os dividir com alguém. Parece uma galinha a tomar conta dos seus pintos. Se conseguir, não participa o ocorrido, não anuncia no jornal, nada. Chega a trocar, de propósito, a data-hora do sepultamento, apenas para “desfrutar” do morto, sozinha ou com poucos.

Assume posicionamento ao lado do caixão, de pé, absolutamente vigilante. Repreende quando percebe risos ou conversa alta. Exige respeito e concentração para o salvamento da alma em passagem

Esmera-se em decorar o caixão, alisar, bem alisado, o pano de renda que cobre o ocupante, e incansavelmente posiciona as flores, daqui e dali. Absorve todas as condolências e as dores. Conforta os abatidos pela perda. Sofre mais do que os próprios parentes. Desanda a falar bem do "de cujus", mesmo que não o conheça, utilizando as informações obtidas dos presentes.

Outro gosto intransferível é o de arrumar e vestir o corpo. No caso de parente, fica apontando pertences que possam compor a vestimenta. Teve ocasião de lembrar-se do relógio de bolso do tio. Argumentou: - desde que me conheço por gente que vejo o tio Jorge carregar o relógio pendurado nas calças. Não será agora, na partida, que o deixará para trás. Vai levá-lo, sim!

E dessa forma, cumpre obstinadamente um ritual que não lhe foi encomendado. Oferece-se, com prazer! Os familiares, já combalidos pela tristeza, acabam cedendo ao seu zelo, sem reclamar.

No momento de chamar o religioso, para encomendar o corpo, apressa-se em confessar que sabe tudo sobre o ato, e que pode dar cabo da missão sem auxílio. Na verdade, realiza com maestria o falatório; temos que admitir.

Ah! Ia esquecendo-me. A função de carpideira fica, também, na sua seara. Possui vasto cadastro de moças para fazerem o ofício. São pagas para chorar, todo o tempo, com profundo sentimento, em luto fechado. Como se regente fosse, Carminda não deixa baixar o volume da choradeira e mantém o grupo em harmonia. Põe-se atenta para que o coral do sofrimento faça bonito; se isso é possível de ocorrer. 

Mas não pensem que se encerram por aí as suas atividades. No instante derradeiro de baixar o esquife ao jazigo, profere mais algumas palavras. Pedindo passagem entre as pessoas, nas ruelas estreitas do cemitério, consegue oportunidade para deixar a sua marca de excelente oradora fúnebre e exemplar cuidadora daquele que não mais precisa de cuidados. Relata as qualidades e solicita, para arrematar, uma salva de palmas.

Termina assim a cerimônia, mas as atenções de Carminda permanecem. Não é rara a vez que ela sustenta o relacionamento com a família enlutada. Faz constantes visitas, mencionando o defunto e o seu sepultamento. Praticamente, porta-se com inconveniência, pois fica relembrando a tragédia ocorrida.

A alegria deve ser preservada, mas quanto à tristeza é de bom tom que haja esquecimento. Não convém a abertura contumaz do baú dos dissabores, para que as más recordações não venham à tona.

Alfredo Domingos