segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Veja bem... (divagações)


Possuímos “palavrinhas” que insistem em fazer parte de nossas conversas e textos, mesmo que não sejam, digamos, elegantes. Grudam, que geram tarefa difícil para deletá-las, quando conseguimos.

Alguns as consideram vícios de linguagem. Exemplos: hã, hein, tá, né, tipo, entende e veja bem. Vamos ficar com esta última. A adoção do “veja bem” é disfarçada, não sendo muito inconveniente, o que não ocorre com o tal do “entende?”. Este é chato, que dói!

Com a licença do rei Pelé, aquele “entente?”, repetido à farta, é de lascar! Não à toa, os humoristas o imitam.

Situações em que o “veja bem” aparece com força: para buscar atenção; para pausar ou dar pausa ao outro; para ganhar tempo; para articular ou se lembrar; para ser incisivo; para mostrar autoridade ou conhecimento; e por aí vai, quase sem fim...

A coisa vai ladeira abaixo, se o falador, ao dizer o bordão, segura o braço do interlocutor, e mantém a pressão.

Tio Carlito era um desses adeptos do “veja bem”. Era, porque já bateu a caçoleta. Mas imagino que, até, no momento do sepultamento, teria proferido o bendito “veja bem”, ao coveiro. Não deve ter adiantado, né? (estou eu usando o “né?”...)

O tio fazia tanto uso, que não conseguia entabular conversação sem incluir o “veja bem”. Passou a ser a sua marca. A maioria dos ouvintes encarava como característica bem-humorada. Havia, a título de gozação, quem dissesse: - Pronto, chegou o “veja bem”!

No tête-à-tête, mandar um “veja bem” cai suave. Ainda mais, se for pausadamente, com voz cavernosa. Imprime certo charme, convenhamos!

Porém, ao celular, no e-mail ou na conversação aberta surge a estranheza. Confesso: não aprecio!

Quando usamos “veja bem, meu bem” é porque uma bomba está para estourar! Frustração a caminho. É quase impensável que ao dizer “veja bem, meu bem” iremos acrescentar o espetacular “Eu a amo”. Na canção de Los Hermanos, isso rompe de chofre, numa explosão: “Veja bem, meu bem. Sinto te informar que arranjei alguém pra me confortar”. Aí, não tem jeito. A casa cai! (a canção leva a autoria de Marcelo Camelo, e possui o criativo nome de “Veja bem, meu bem”)

Caio Fernando Abreu, escritor inspirado, escreveu: “Ô menina, “veja bem”... Ouça uma boa música, leia um bom livro e bola pra frente. Pode parecer clichê, mas funciona. Vá por mim”. Soa doce esta mensagem. Permite que pensemos na continuidade e, indo além, exprime conselho, com tom de afago.

Contudo, não podemos nos esquecer do “veja bem” simples, elementarmente simples. Exemplo: - Querida, “veja bem” estas letras. No caso, não carece de ter dúvida. O pedido é para olhar com exatidão, somente, não residindo nenhuma antipatia.

Seu Chico é aquele porteiro “pau para toda obra”, no meu edifício. Funcionário antigo, ainda pratica a reverência no exercício da função. Estimado por todos. Porém, é um outro elemento, de canequinha, na fila do “veja bem”. Ao entregar encomenda ou correspondência, aos moradores, não titubeia, acrescenta o tal do “veja bem”, assim: - Seu Fulano, “veja bem”, tenho esta encomenda para o Sr. E, também, desta maneira: - Dona Fulana, “veja bem”, o seu gato escapou para a vizinha, tá sabendo?

Como resido no primeiro andar, debruço-me na janela, ainda cedo, para observar e ouvir o papo bem-humorado dos porteiros da vizinhança, incluindo o bom Chico, enquanto todos varrem as suas calçadas. Trata-se de um concerto da piaçava, no início da lida. Pra lá e pra cá... As histórias ali expostas dão um livro. São interessantes. Curiosas.

Em um dos dias, Chico aventurou-se. Sugeriu em voz alta: - Pessoal, “veja bem”! Tive uma ideia. Num domingo, poderemos sair daqui, de bike, e fazermos um longo passeio. “Veja bem”, talvez, para o Aterro do Flamengo.

O baixinho, do prédio em frente, intrometeu-se: - Eu topo! Posso até colocar a minha camisa do Mengão. Cobra-Coral, Papagaio, Vintém, vou vestir rubro-negro e não dará pra ninguém, como fala o samba da Estácio de Sá. Que tal, se todos forem com as camisas dos seus clubes?

Chico reagiu: - “Veja bem”, sou vascaíno e assumo! Tenho até camisa nova - apoiando-se no cabo da vassoura.

Reginaldo, do edifício da esquina, puxando a vassoura, foi chegando-se, e largou a fofoca: - Aquele “bacana” da SUV preta, que passa sempre correndo, deu-se mal. Andou de jet-ski, tombou, e ficou todo arrebentado. Silvinho, um morador nosso, bateu com a língua nos dentes, mas pediu segredo, hein! Se ele contou, porque eu não posso contar... (risos)

De novo, Chico entrou na conversa: - “Veja bem”, essas coisas acontecem... e com todos. Não é privilégio de A, B ou C, infelizmente - mostrando nos dedos.

“Veja bem”, fiquemos por aqui. O bordão foi repetido à exaustão. Vamos dar um basta, se não será o roto falando do esfarrapado. Notemos, de leve, a repetição absurda de “veja bem”, neste texto. Ave!

Alfredo Domingos – 15/09/2022

 

terça-feira, 26 de abril de 2022

Negando e disfarçando

André Esmeraldo, amigão de sempre, possui empresa de auditoria contábil. Na nossa última conversa, ele relatou que, ao fazer auditoria em empresas contratantes dos seus serviços, muitas curiosidades surgem, umas até divertidas, além da árdua lida. Foi ao detalhe ao falar, ao pé do ouvido, que alguns auditados se rendem à tentação de ludibriar o trabalho do auditor. Ficam na vontade, apenas, pois quando o trabalho de auditoria é bem realizado a verdade aparece, seja por meio de documentos ou de palavras. 

Durante o relato, lembrei-me, assim do nada, da canção “Evidências”, de José Augusto e Paulo Sérgio Valle, composta em 1989, sendo muito conhecida, com mais de oitenta regravações. Ela, em dois dos seus versos, ao menos, tem a ver com auditoria, se observarmos com atenção. Abaixo, os versos em vermelho traduzem a relação, apontando a maneira sutil de o auditado agir: (está transcrita somente parte da canção)

“E nessa loucura
De dizer que não te quero
Vou negando as aparências
Disfarçando as evidências

Mas pra que viver fingindo
Se eu não posso enganar meu coração
Eu sei que eu te amo”.

Alfredo Domingos

 

Bagunça

 

Uma bagunça "organizada" conseguiu fazer a união entre o sagrado e o profano, em abril de 2022. Formou-se a junção de Tiradentes, Mártir, decapitado; São Jorge, a cavalo, com lança e dragão; carnaval, uma semana depois da Semana Santa; e uns com e outros sem máscara, em função, ainda, da Covid-19, não pelas fantasias de Zorro, Tiazinha, Salvador Dalí e outras. Vamos que vamos!

Alfredo Domingos

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

A ambulância literária

  “É possível que eu me esteja a transformar num ser humano”, afirma a protagonista de “The uncommon reader”, de Alan Bennett, depois de ter descoberto as alegrias da leitura. Como que a dizer que os livros, e, portanto, as palavras podem curar, produzir mudanças positivas, salvar. De tudo isto, está também convicto o italiano Cono Cinquemani, nascido em 1980, autor e realizador, para além de fundador do Pronto-Socorro Literário, que desde 2017 permanece em itinerância.

“O que faço, juntamente com outros voluntários, é deslocar-me a todas aquelas realidades periféricas que, em Itália, não têm nem biblioteca nem livraria”. O objetivo é devorar quilômetros a bordo da ambulância literária (um utilitário branco), para levar, aos lugares privados de espaços culturais, livros e, sobretudo, palavras.

O “Pronto-Socorro Literário” desloca-se de norte a sul, e quando chega ao local programado é como se desse vida a hospitais de campanha. Os voluntários, vestidos de médicos, propõem aos pacientes literários cartões, nos quais é possível assinalar uma de cinco emoções ou personalidades (ciúme, tristeza, ira, stress, timidez). No seguimento dessa triagem, prescrevem, mediante uma “receita”, um livro, que pode ser um clássico ou uma novidade.

Trata-se de uma experiência a alcançar sucesso, conseguindo, entre outros feitos, avançar não só entre os jovens – crianças e adolescentes –, como também nos adultos, que se deixam guiar neste percurso empático, de cura, de possibilidade de renascimento.

“Eu, com o Pronto-Socorro Literário, não inventei nada de novo; as bibliotecas itinerantes remontam ao século XIX. Mas ao adentrar-me no mundo editorial, na sequência da publicação do meu primeiro livro, fiquei perturbado pela descoberta que no nosso território são 687 as vilas ou povoações sem o letreiro de uma livraria ou um cartaz que conduza a uma biblioteca pública. Em resumo, nasce desta exigência, e depois também do estudo da metodologia relativa à biblioterapia, o meu desejo de dar vida àquilo que podemos definir muito propriamente como um serviço”, explica Cinquemani.

Um serviço, sim, um serviço para a comunidade, para quem está à procura de palavras para definir as suas emoções; palavras para dar um nome àquilo que se experimenta, para encontrar conforto, remédio, solução, mas também para rasgar o manto de solidão que tantas vezes envolve os habitantes desses lugares.

“Estamos convictos de que o livro certo lido no momento certo salva-te de algo, até de ti mesmo. Por isso, plenamente conscientes da importância das palavras, não temos intenções de nos determos: continuaremos a assinar milhares de receitas literárias e a confrontarmo-nos com centenas de pessoas de todas as idades”, refere-se Cinquemani.

(de: zelmar.blogspot.com.br)

*Enrica Riera (texto)
In
L'Osservatore Romano – 17/2/2022