terça-feira, 30 de abril de 2019

A catraca é o meu lar



Sou a Tilde, de Matilde. Minha vida não “é andar por este país”. É permanecer na catraca de acesso às estações do Metrô.
Por treze anos, esta é a minha rotina. Atender e atender às pessoas. Milhares delas. Por inesgotáveis motivos. Perguntas e mais perguntas. A maioria por idosos. Desavisados. Carentes. Tontos. De ótima fé. Uma curiosidade: jovem, atualmente, faz poucas perguntas.
Os problemas, como já disse, são inesgotáveis. Perda do cartão da viagem ou a inexistência dele. Seleção das catracas, por necessidade ou tipo do cartão. Rumo das escadas para as plataformas tais e quais. Encontrar pacote perdido. Poder entrar e retornar. Destino desse trem. Menor poder passar gratuitamente. Encontrar o médico. Caso de roubo. Perda de documento. E assim, vai...
Fico cansada. Em pé não é mole! Mesmo com período de descanso. Mesmo cumprindo turno. Mas gosto de atender as pessoas. Por segundos, minutos, elas precisam de mim. Vêm esbaforidas obter o que necessitam. Umas não são nem muito educadas. Não me importo. É dever servi-las. Porém, fico assustada com o avanço de muitos na minha direção. Alguns querem bater papo, do nada! Perguntam pela minha família. Indagam sobre filhos. Não sabem que não tenho filho. No momento, nem namorado. Tinha Augusto comigo. Havia plano de juntar os panos. Certo dia, não posso me referir a “belo dia”, óbvio, ele pediu pra sair. Falou dúzia de desculpas, e foi mesmo. Entupi, em mim, o rompimento. Não aceitei. Sou do tipo Macabéa! Refiro-me a de Clarice Lispector.
Existe falta de ouvir. Indagam e falam. Repetem. Mas ouvir que é conveniente, pouco se pratica. Falei em repetir o assunto. Acontece. Deve ser para ter o outro mais tempo por perto. Um instante além.
Há uma coisa na qual deito e rolo. São os cumprimentos de “bom-dia”! Adoro recebê-los. E retribuir. São aos montes. O bom-dia, pra mim, significa a “força” para o novo dia. Sinto que caio no colo do recomeçar. Tenho mais horas para me abraçar no tempo e na vida.
Rondam o ambiente, de modo geral, certo frio e vento, vindos dos aparelhos de ar-condicionado e dos ventiladores. Não descarto, de jeito algum, o casaco cinza. Ele é companheiro. Faz parte da minha figura. Tenho a sensação de que funciona como escudo, a proteger-me.
A bem da verdade, somos uma turma. É um grupo que reúne empenhos. Cada um na sua função. Assim, o esforço coletivo rende melhor. Sou feliz em ter o meu valor individual para somar. A importância de cada trabalho é você quem dá. Seja ele qual for.

Alfredo Domingos

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Conversa para distrair



O que é, o que é?
Dobradinha, apertada dentro da embalagem. Mexeu a primeira vez, nunca mais fica igual. Em pouco tempo, acaba amassada e danificada.
Termino com o mistério: é a “bula de remédio”.
Papelzinho cabuloso. De letras miudinhas. De difícil leitura. De conteúdo enigmático - se você conseguir entendê-lo, até o final, será um vencedor. A doença, por certo, irá embora. Entregará os pontos. Por outro lado, o tira e retira da bula, quase sempre, causa dano à embalagem. A caixinha, em pouco tempo, chega ao estado lastimável. Maltratada, com as partes deformadas, em função de tudo que carrega, num espaço mínimo, inclusive o papelzinho, alvo do nosso papo.
Há pessoas que se negam a penetrar no seu teor. Outras alegam ser primordial conhecer. As muitas dúvidas cabem ao médico ou ao farmacêutico sanar. 

De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a bula é um documento legal sanitário que serve para obter informações e orientações sobre medicamentos necessárias para o uso seguro e tratamento eficaz. Ela pode ser de dois tipos: bula para o paciente (que é aquela destinada ao paciente, com termos mais acessíveis e diretos) e bula para o profissional da saúde (que é aquela destinada ao profissional, com termos mais técnicos e informações mais complexas). As bulas devem conter informações úteis sobre prescrição, preparação, administração, advertência e outros aspectos relevantes.
Nas entrelinhas, há vários intentos. Alertar o paciente é um deles, e as precauções diversas do laboratório, para se guardar de futuros problemas, são os outros. Daí, observamos informações múltiplas, com nomes e significados complicados.
Então, OK! A ANVISA carimba a utilidade e a legalidade da bula. Muito bem!
Mas aqui entre nós, trata-se de seara difícil. Em primeiro, que somente recorremos a ela por doença, quando estamos fragilizados, o que torna o entendimento um tanto deturpado, pelo estado de aflição. Segundo, porque nos apegamos ao médico, que faz a depuração da bula, transmitindo confiança, no que interessa ao paciente conhecer. 

Há casos curiosos envolvendo a bula:
Marquito, meu primo, leva na mochila um amarrado de bulas. O coitado teme sofrer, de repente, de alguma enfermidade, um mal-estar, que seja, e não se lembrar do nome do medicamento. Faz anotações, na bula, contendo o nome do médico, seu telefone e a doença respectiva. E ainda coloca por ordem alfabética. Conduz o material como um patuá, ou uma âncora, para os medos, vai saber... 
Joana, a amiga, estuda os males à saúde por meio da bula. Faz coleção. Ops! Entendo que a doença esteja nela. Chega a recomendar o “tratamento”, como médica fosse, baseando-se no conhecimento das bulas, que adquire estudando-as vorazmente. Ela, na realidade, pratica aventura perigosa. Já foi avisada disso.
O ideal, contudo, é que não precisemos de medicamento algum. A vida sadia faz bem de muitas formas: bem ao bolso, bem ao espírito e bem quando inibe a necessidade de horas de dedicação às bulas, quase sempre sem entendê-las!

Alfredo Domingos

quarta-feira, 3 de abril de 2019

As inconveniências ocorrem, e como!



Desabafos ou reclamações surgem a cada momento, em função da invasão de privacidade pelas redes sociais, que as pessoas se dizem acometidas.

A maioria reclama bastante. Mas, no fundo, gosta com a mesma intensidade. Mais ou menos do jeito: “reclamo, porém, adoro”! 

O vazio que se sente em não receber as tais “novidades”, “notícias” ou “fofocas”, todas fresquinhas, de várias fontes, sobre diversos assuntos, mesmo que seja sobre o nada, faz com que sejamos invadidos por uma angústia danada. É a contrapartida da ausência, da qual sentimos falta! Podendo, inclusive, ser tema do divã de psicologia.

Vamos combinar que as inconveniências ocorrem, e como! Em muitas vezes, os usuários são sem noção. São tomados por um impulso incontrolável de revelar e de mostrar. Não importando a ocasião. São capazes dos maiores malabarismos para estar. As consequências, se acontecerem, serão resolvidas mais tarde.

Nunca houve tanta aproximação! Nunca a ética foi tão desrespeitada. O velho recurso do “simancol” (medicamento irreal, hoje seria “virtual”, do tipo: – “vê se simanca, homem!”, que era passado àqueles que exageravam no avanço dos sinais e na impertinência) está em desuso.

Na realidade, penso um pouco diferente quanto a essa aversão à intimidade, que as pessoas incorporaram, nem sempre de verdade, mais da boca para fora. Hoje, temos “necessidade” de nos fazer amigos, compadecidos e entendedores de todos os problemas, de todas as pessoas, ainda que mal as conhecemos. Isto não é de todo ruim! Serve como alento aos sozinhos.

Advogo que existem certas ocasiões nas quais a companhia se faz necessária, mesmo a distância, fazendo com que as redes tenham valor. É melhor trocar bobagem, desde que sadia, a ficar isolado. 

Como exemplo...

A minha turma de formatura fez um grupo de “WhatsApp”. No início, tínhamos muitas mensagens. Hoje, alcançamos um equilíbrio, e a coisa está mais restrita. Mas anteriormente, as datas de aniversário eram divulgadas constantemente, ao longo das conversas do grupo. Para um universo de além de cem pessoas, quase todos os dias havia aquela chuva de cumprimentos. Eram parabéns infindáveis, com alguns textos rememorando passagens de antigamente. Às vezes, as histórias vinham repetidas do ano anterior. Houve quem reclamasse, alegando que não sobrava espaço para outros assuntos, inclusive estendendo muito as matérias a ler. A solução veio com a criação de outro grupo, apenas de “Avisos”, contendo, aí sim, largueza para os prolixos cumprimentos.

Na minha linha de pensamento, não deixava de dar força para o congraçamento pelos aniversários, pois, nós, os velhinhos, tínhamos alegria em nos dirigir aos demais, lembrar dos acontecimentos e ter, ainda que momentaneamente, com quem compartilhar as nossas emoções.

Entendo que os canais de comunicação não devem abordar temas inconvenientes, grosseiros, com pornografia, etc., porém, ser campo fértil para o entretenimento e o afastamento da solidão. Deixemos os velhotes falarem! E os demais também!

O contato, vamos combinar, exige tempo e disposição para acessá-lo, entretanto, há a opção de somente fazê-lo quando nos convier. Não estamos a fim? Voltemos mais tarde, quando der.

Alfredo Domingos