sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Independência ainda que tardia

Foi criada na religião. Santana, desde menina, frequentava os cultos, reuniões e cerimônias. Os amigos e as mínimas brincadeiras estavam ali. Passou pela infância e adolescência num estalo. A descontração, o riso fácil e a comunicação foram cerceados ao extremo. Quando se achou, era adulta e casada com um companheiro de coral.

Suas roupas obedeciam ao esquema das mangas compridas e saias longas. Os sapatos eram baixos e fechados. As golas, todo o tempo, permaneciam hermeticamente fechadas. Passou vários anos sem cortar o cabelo. Ostentava grossas tranças que, presas, davam voltas na cabeça, serpenteando até se tornarem quase uma carapaça.

O pai abandonara as coisas comuns, dos tipos futebol, bar e bate-papo, para se dedicar inteiramente às atividades religiosas. Fazia o que aparecesse. Da troca de lâmpada à pintura de paredes. Saía do trabalho às carreiras para dar o segundo expediente na casa de Deus. Parecia, até, ter satisfação nas tarefas. O foco era uno.

A mãe, habilidosa na costura, fez um sem número de enxovais, ao longo dos anos. Esbanjava capricho. Fazia questão de ir à casa das pessoas para entregar, morta de alegria, as roupinhas e mantas. Chegou a ser madrinha de muitas crianças. Embrulhava cada peça cuidadosamente em papel fino, e, dependendo do sexo do recém-nascido, usava a cor rosa ou azul.

Sabemos que a rotina, de tão rígida, acaba viciando, oferecendo como única opção obrar, desmedidamente, em vez de o nada fazer ou de procurar algo diferente.

Santana iniciou os três filhos na igreja, também. Era dura com eles. Exigia estudo ou trabalho, de preferência os dois. Os bons modos não podiam faltar. Repetia à exaustão:
- Filho, seja honesto.
- Cumprimente as pessoas.
- Só o estudo e a religião fazem um homem de valor.
- Filha, dê lugar aos mais velhos.

Assim, seguindo alguns exemplos como estes, conseguiu edificar, sem trégua, o bom combate diário, privando-se de vícios e exageros.

Concordamos que o envolvimento com a ditadura das obrigações é cansativo. Põe cerco e sufoca a criatividade. Tira-nos o ar. Cega para os instantes leves e doces. A tensão se instala de tal forma que nos rouba a liberdade.

Entre um credo e outro, nesse ritmo acelerado e encurralador, a vida avançou sem que, na realidade, os personagens envolvidos dessem conta.

Ao contrário, quando se está à toa, o tempo não passa. Os momentos fluem vagarentos. Há espaço para a poesia, a troça e o refletir sadio.

Como é gostoso devanear, soltar as amarras!

Santana não se tocou sequer de um tantinho disso. Seguiu locomotivamente, absolutamente nos trilhos.

Mas aí, no correr dos anos, vem a parada obrigatória. A estação surge no caminho, fazendo com que haja a desaceleração.

Santana, já idosa, ficou doente, sentindo isso e aquilo. Ora era uma tosse persistente, ora uma dor nos ossos incessante. Faltavam-lhe as forças. Exames eram feitos aos borbotões. Ocorriam idas e vindas do hospital. Emagreceu, perdeu a cor e foi para a cama. A cura parecia distante ou inalcançável.

Combalida, constantemente reunia a família em oração e, cheia de fé, pedia salvação. Em segredo, lamentava-se da sorte, lançando mão do inevitável “logo eu, por que, Senhor?”.

E nessa derrocada, surgiu o final sem explicação para explicar. A saúde foi embora e Santana acompanhou. No momento derradeiro, com todos ao redor, pediu que dessem as mãos, e, em lágrimas, soltou no mais alto tom que pôde: - eu quero CACHAÇA!!!

Em seguida, descansou sem provar da “marvada pinga”.

Estamos concluindo, obviamente, que Santana não pretendia se embebedar, tomar todas. Porém, queria, num último suspiro de lucidez e vida, gritar ARREGO!!! Rasgar a regra e dar uma grandíssima banana para o correto. Promover a sua independência de tudo, embora com atraso. Livrar-se terminantemente, mesmo sendo por meio dos braços conspiradores da morte.

Alfredo Domingos

Oração da bola



Sou feita de couro, plástico, papel ou meia.
Redonda, às vezes nem tanto.
Sim, sou a bola, tão em moda nestes tempos.
Estou em cena, aqui, acolá, alhures.

Circulo no gramadão, graminha, quadra, cimento ou terra.
Aliás, estou presente em qualquer espaço, por estranho que seja.
Sou conduzida por craque, pereba ou fominha.
Recebo chutão, colocada, enfiada, chutinho ou bico.

Ocasionalmente, sou isolada fora do estádio, sem volta.
Alcanço voo. Entro em órbita.
Em outras, ganho beijo ou fico sob as camisas, viro barriga.
Tenho cores e desenhos sem fim.

Com toda a força ou devagarzinho.
Com a mão ou pé.
Invado áreas ou cruzo linhas. Sou levantada ou enterrada.
É o árbitro quem me conduz nas mãos. Sou a estrela.

Mas os grandes momentos são: o GOL; a CESTA; o ACE; e o PONTO!
Aí, me acabo. Fico envaidecida. E comovo os outros, também.
Grandíssima é a alegria.
Ave-Maria, que loucura!

Não finalizo em vão.
Sirvo-me desta oração.
Que a minha atuação seja traço de união!
Povo feliz, irmanado, estenda a mão.

Alfredo Domingos

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Assim falam os boleiros


Fonte da imagem: www.radiodeverdade.com
Da esquerda para a direita: Sergio Américo (Tupi), Sandro Gama (Band), Sergio Guimarães (Transamérica), Eduardo Gabardo (Gaúcha) e Rogério Ribeiro (Transamérica) – 2013

Entre os esportistas, os jogadores de futebol, principalmente, têm um linguajar característico. De natureza simples, é o que se pode chamar de papo reto, direto, movido por poucas palavras. Porém, não são apenas eles, chamados de “atletas”, que assim procedem. As pessoas envolvidas com o esporte também se inserem no mesmo modo de falar, incorporando a forma de expressão dos jogadores. São estes os treinadores, médicos, massagistas, fisioterapeutas, árbitros, auxiliares do árbitro, comentaristas, narradores e repórteres.

O jeito peculiar da comunicação é reconhecido de imediato. Inicialmente, nota-se a dificuldade que o repórter tem em conseguir respostas à suas perguntas. Normalmente, o entrevistador esforça-se em conduzir a pergunta, facilitando ao máximo a resposta.

Um exemplo do malabarismo do profissional, após ter obtido por outras fontes todas as informações necessárias: - a tendência para o próximo jogo é que você volte à equipe, segundo revelou o médico do Clube, e assim ocupará posição no meio-campo, de acordo com o que o treinador externou, pela ausência do Pedrinho, jogador que executa a função, não é?

Resposta: - é...

São monossílabos, geralmente, tão somente complementando a abrangente arquitetura da pergunta.  Ou será que o repórter elaborou em demasia a pergunta, não dando chance a uma resposta também elaborada?

Fica nítido que a entrevista é na base do saca-rolha, a não ser que o craque queira desabafar ou reclamar de alguém, usar para si o momento. Aí, ele conduzirá a fala sem poupar palavras, às vezes ásperas, e com bastante entusiasmo.

O entrevistador comenta que atualmente há limitações extras, do Clube e do representante do jogador, no acesso para colher informações.

Outro óbice existente no mundo do futebol é que as coisas mudam a cada segundo, conforme declara o competente repórter Sérgio Américo, da Rádio Tupi. Dessa maneira, prever o que acontecerá na partida vindoura é tarefa difícil. A declaração dada hoje, por jogadores e dirigentes, pode não ter sentido amanhã.

No meio do processo, está o torcedor, ávido de notícias sobre o time do coração. Pregado na TV, na internet, no carro e de radinho ou celular no ouvido, nos estádios.

Para ilustrar, reunimos algumas expressões e palavras usadas costumeiramente pelos habitantes do planeta bola, que, afinal, dão graça ao esporte da nossa preferência:

- como eu falei;
- levantar a cabeça;
- o companheiro quer nos ajudar;
- prefiro não falar do árbitro, mas...;
- o “professor” pediu para...;
- estamos preparados;
- temos que pontuar;
- sairemos desta situação incômoda;
- zona da confusão;
- estamos focados;
- foi questão de desatenção;
- houve falha de posicionamento;
- entrar no G4;
- sair do Z4;
- conto com...;
- temos tudo para melhorar na tabela;
- o objetivo é sair na frente;
- voltar melhor no segundo tempo e virar o jogo;
- o jogo está equilibrado;
- vamos lá;
- sofrimento;
- pressão;
- raça;
- superação;
- recuperação;
- descansar;
- paciência; e
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- Conte o que você viu, aí atrás do gol, Aquiles Júnior! – disse o narrador, após um emocionante lance, passando a palavra ao repórter de campo.

Alfredo Domingos

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Cortar - o verbo do momento

Há etiqueta, orelhinha, unha grande, sobrancelha peluda, ponta de qualquer espécie, fio pendurado, barbantinho saliente - tudo é cortado!

Praticamente, em cada cômodo uma tesoura. E na bolsa de mão, também. São tesouras de todos os tamanhos, tipos e marcas. Sempre afiadas. Passa a encomenda aos amigos, qualquer que seja a viagem. Alega que não ocupa espaço na bagagem.

Procura a mercadoria, inclusive, nos brechós, nas feiras de antiguidade e nos armarinhos.

Se a namorada expõe-se de calcinha e sutiã, desavisadamente, já é motivo para a tesourada funcionar, e as etiquetas irem para o espaço.

O homem é atento!

Por outro lado, um primo possui a mania de comprar Band-Aid. Mas, o produto deve ser estrangeiro. Para durar, por exemplo, no calcanhar, durante vários banhos. O estoque é gigantesco. Vez por outra confere a validade. Vamos e venhamos, ele precisa, para dar saída nos Band-Aid, sofrer muitos acidentes. Vive oferecendo às pessoas mais chegadas. Parece que se orgulha em observar o curativo grudento circulando por aí, como sendo sua marca.

Porém, o homem da “desetiquetagem”, nosso mote, é infalível no corte. Parece o “Edward Mãos de Tesoura”, devastador dos cabelos alheios.

Há incomodação com o que está fora de alinhamento. Ponteagudo. Saliente. E excedente. O desconforto aumenta nas camisas, quando as etiquetas ficam fustigando-lhe o pescoço. Barbaridade! Dá coceira no cidadão.

Atualmente, principalmente no Governo Federal, algumas tesouras podem ser distribuídas, pois terão utilidade em excesso. Falamos em cortes, de despesas, de cargos, aqui e ali, mas a situação está grave, sem resolução. Onde estão as tesouras, afinal?

Então, é chegado o momento, se não atrasado, de retirar o mau pela raiz e aparar o que cresceu indevidamente. Os jornais e entrevistas na TV apontam, frequentemente, e muito, todas as providências a tomar, não precisamos repeti-las. Os políticos e os economistas estão na pista. Que pensem e façam!

A história de pacto para o soerguimento da Nação é pura teoria. Mesmo sem a união das múltiplas correntes, que sejam realizadas as ações positivas e de forma imediata. Basta haver um mínimo de liderança interessada no bem público, desgarrando-se do olhar pequeno sobre grupos ou partidos. Existem o partido do governo e os partidos aliados; pois bem, que se empenhem em recuperar as questões básicas, fornecendo o apoio devido ao Dirigente Máximo do Poder Executivo, mesmo com a oposição em ebulição. Pronto, pensemos, assim, no País!

E a mania de cortar do nosso amigo? Coitado! O máximo que consegue é estirpar umas etiquetas incomodativas, na esfera do lar. Caso recebesse um “tesourão reforçado”, para as  tarefas maiores e emergenciais, talvez obtivesse sucesso, salvando-nos dos problemas nacionais.

Vá, que é sua, cortador de etiqueta!

Alfredo Domingos