segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Pergunta capciosa

 
Sofrônico é um cara conservador. Seus hábitos são previsíveis e regrados. Não se afasta da rotina por nada. Desde que acorda até o sono da noite, cumpre um roteiro absolutamente programado.

Outro dia, Sofrônico resolveu ousar. Ao ter que pagar uma conta de energia elétrica, fugiu do tradicional, da caixa bancária. Entrou numa Casa Lotérica, no Centro do Rio de Janeiro, e procurou o guichê. Usando de polidez, para se certificar de que daria certo, perguntou:

- Senhorita, por obséquio, é possível pagar esta conta em “espécie”?

A resposta foi totalmente inesperada:

- Senhor, poder pagar, sim, mas eu não sei o que é “espécie”.

- Entendo, senhorita, mas com dinheiro posso pagar?

- Claro, fique à vontade – a moça encerrou o assunto, dando continuidade ao serviço.

Alfredo Domingos

Limpeza na casa e na vida


Passei os últimos dias fazendo limpeza. Nos armários e gavetas. As tarefas foram eliminar coisas inúteis ou sem uso e reduzir a bagunça. Revirei tudo na casa, no finalzinho das férias.

Utilizei como inspiração a lição deixada por Lena Gino: “Casa arrumada é assim: um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz...”.

A propósito, consultei um livro que trata deste assunto de endireitar, seja a casa ou a vida, “A Mágica da Arrumação”, de Marie Kondo, editora Sextante, e dali retirei boas dicas, sendo duas em destaque: “ficará surpreso com o número de pertences que perderam a sua função” e “mantenha exclusivamente as coisas que são valiosas para você”.

Não tinha a menor ideia do tanto que encontraria. Desconhecia a minha capacidade de armazenar papéis, fotos, objetos e roupas. Em decorrência, constatei que era muito apegado. A hora era de mudança. Abrir caminhos para os bons fluidos circularem. Deixar a casa mais leve e clean, como se diz modernamente. 

Imprimi rotina de combate. Considerei caso de calamidade própria. 

Acordava cedo, colocava bermudas, camiseta e sandálias de dedo. Era o uniforme de batalha.

Comecei por repintar os interiores, eu mesmo, usando estritamente cores claras. Repeti, em vários ambientes, a cor “açúcar cristal”, que trouxe a sensação de cômodos maiores, limpos e descomplicados, recomendada por alguém entendido em Feng Shui. Para citar uma alteração significativa, atrás da cabeceira da cama havia uma parede na cor bordô, pavorosa, que não sei como não mudei antes. Esquentava o visual do quarto e não trazia a sensualidade que um sozinho imagina obter.

Até a parte da cozinha foi “inspecionada”.  Em função disso, por exemplo, verifiquei surpreso o número enorme de canecas. Não estimava o tamanho da coleção. Para o quê?!... Sem contar a infinidade de panelões, panelas e panelinhas. Acho que fui dono de restaurante sem saber!

Em complemento, o fogão permaneceu fechado e a geladeira quase vazia, apenas com material para sanduíches. Havia necessidade de ser prático!

Deparei-me com boas e más recordações. Invariavelmente, a cada revirar de caixa ou de gaveta brotavam lembranças que me deixavam estarrecido. As expressões que mais usei foram: - Como? Não acredito!

Para apresentar uma situação inusitada, vale revelar que achei numa gaveta, entre as camisas de pouco uso, um vestido rosa, decotado, presente dado por mim a “ex”, Carol, pela qual, ainda, tenho grande saudade, depois de oito meses. Estremeci na base, quase uma vertigem. O vestido, quando no corpo, permitia mostrar com elegância parte dos seus lindos seios. Era uma mulher alta, de corpo magro, morena, cabelos compridos, que permanecia descalça, enquanto em casa, conduzindo uma presença incrível, marcante. Sobrava-lhe força interior, demonstrada por determinação de mouro, embora com extrema doçura.

Tamanho era o seu arrojo, que numa manhã cinza, não poderia ter cor diferente, à mesa, pegou carinhosamente a minha mão e bem baixinho disse:
- Estou incomodada, vou abrir a janela para outras paisagens, respirar ares renovados. Então, após esta xícara de café, irei embora. Entenda, por favor.   
Se eu tivesse de pé, teria desabado no chão!

Voltando ao achado, o quarto ficou tomado pelo perfume de Carol, parecia obra dos céus, e, atordoado, tive que fazer pausa na arrumação. Recuperar-me da emoção!

Não discerni se foi esquecimento, à toa, ou se foi proposital o abandono da peça, para que a chaga do amor ficasse sempre aberta. Contudo, seria improvável “esquecer” no meio das minhas roupas. A hipótese da intenção até que me animou. Lancei a pergunta a mim mesmo: - Será que resta chance de volta?...

Nota relevante: não tive coragem de me desfazer do vestido, tornei a guardá-lo; e fiz mais. Caprichei num embrulho com papel de seda, para tentar perpetuar uma das marcas da relação. Homem é bicho bobo!

Como sou ligado no ofício de escrever, verifiquei que possuía pastas e pastas de escritos. Há nove anos, no mínimo, junto textos terminados, faltando digitar, e outros por terminar, devendo empreender o derradeiro empurrão. Acontece de a história brotar e depois ficar faltando oportunidade para revê-la e considerar encerrada. Aliás, essa dificuldade é grave, pois uma ideia empacada impede que as emoções, as mensagens, etc., sigam os seus caminhos e atinjam a quem as merece. Ficamos com algo refreado dentro de nós, o que não é bom! Gastei dois dias selecionando, mas consegui reduzir a apenas uma pasta. Foi duro abrir mão de textos os quais considerava, antes, obras-primas, verdadeiras preciosidades. Que nada! Avaliei alguns como bem fraquinhos.

O capítulo das cartas é incrivelmente bizarro! Encontrei uma carta amarelada, esmaecida, com o parágrafo final rasgado pela metade, onde identifiquei, com muito esforço, no que sobrou, a despedida recheada da palavra “beijos”, até o rodapé, tendo desenhos de coração por todos os lados, de várias cores. Que enxurrada de bregueci! Eu e ela devíamos gostar da relação, devido ao conteúdo da carta, que descrevia com detalhes situações íntimas que tivemos. O problema é que deu branco na memória e não me lembrava da moça, e justamente o seu nome fez parte do corte do parágrafo, deixando como pista o início do nome – “Lu”. Pensei em inúmeros nomes sem associar à pessoa alguma: Luciana, Ludmila, Luana, Lucinda e tantos outros. Pesquisa em vão! Nenhum sentido. Imaginei que poderia ser um apelido, o que também não me levou à solução. Listei mentalmente as namoradas e, pelo incrível que pareça, conclui que não me relacionei com alguém que tivesse nome começando com “Lu”. A maioria, só de curiosidade, foi “Maria”. Várias Marias: Fernanda, Auxiliadora, Augusta, Cristina, do Carmo, Teresa, do Amparo, inclusive uma Umbelina, de longínqua lembrança e estranheza.

Ainda sobre cartas, deleitei-me com as juras de amor da adolescência. Tão intensas e ocas, ao mesmo tempo, que tangenciavam o ridículo! Em uma delas, aproveitava para sanar as minhas dúvidas de matemática. Quase não havia espaço para comentar sobre nós. Não pretendia uma namorada, pelo jeito. Esforçava-me em aproveitar a professora.

Nas viagens a serviço, correspondia-me com a minha mãe. Na releitura, agora, depois que ela faleceu, emocionei-me e revi ensinamentos e conselhos, pois ela era perfeita em relatar os assuntos familiares e tirar as suas conclusões, que fazem sentido até hoje. Notei quanta sabedoria havia embutida. Daí, a conclusão de consenso de que papo de mãe é inigualável!

Com respeito às cartas, aos documentos e a qualquer tipo de papel, insisti na precaução de não acumular, porque seria propiciar o mofo, a poeira acumulada e as outras consequências nocivas.

Bem, as cartas rarearam muito com a movimentação de e-mails e o uso de whatsApp e face, vindo a perderem valor, exceto aquelas especiais, que nos marcaram. Assim, de duas caixas atopetadas de cartas, mantive o irrisório número de sete, que também é cabalístico, o que faz sentido.

Há, porém, a parte poética relativa à carta, que ficou no passado, basicamente em dois aspectos: o contato com o carteiro (em algum momento, o carteiro mesmo anunciava quem era o remetente, pela repetição do envio) e a expectativa de receber a carta (importante acontecimento, já que as grandes confidências e revelações não eram passadas pelo rápido contato telefônico, mereciam detalhamento). Além disso, fazer carta era prazeroso e romântico.

No entanto, a etapa mais árdua foi organizar e peneirar os livros. O lado sentimental pesou muito, em função do apego gigantesco que pude constatar. Precisei interromper, de vez em quando, na busca de fôlego para me desfazer de uns poucos exemplares.

Tudo era julgado importante e assim a pilha da permanência somente aumentava. Dizia: - Este fica! Este também! Deste não devo abrir mão! Este é para guardar! Este preciso reler! E ia arrumando motivo para manter. No desenrolar, encontrei alguns não lidos e outros dos quais não me lembrava. Houve trabalho, meu amigo!

Livros são como filhos, dão um orgulho danado! Devo informar que pouco consegui neste quesito. Mantive quase todos os livros, muito devido a ter o hábito de fazer anotações nas páginas. Tento enriquecer o livro, para o meu uso e para o das pessoas que virão, com as minhas inquietações e opiniões, inserindo também comentários de críticos e pensamento de autores, no que cabe atrelar. Desta forma, cada livro passa a ser personalizado, adquirindo novas características.

A ação nas roupas e sapatos foi mais fácil. Ufa!

De cara, retirei do armário e das gavetas o total das roupas e sapatos, para depois resolver sobre o que não queria. Fiz a “montanha” para selecionar. Assim, não permiti que escapasse alguma coisa da triagem. Esta foi mais uma dica do livro de Marie Kondo.

Diversos motivos serviram para eu fazer o descarte. Camisas grandes ou apertadas. Camisas ditas sociais esquisitas, de colarinhos bicudos ou de mangas muito compridas. Calças fora da moda, algumas largas, que davam dois de mim dentro. Casacos inúteis em relação ao nosso clima. E paletós de lapelas e ombreiras imensas, parecendo os típicos dos mafiosos.

No ramo dos calçados, havia sapatos embolorados, tênis cambetas, um até sem cadarço, porém, soube aproveitar a maioria, que dava condição de eu sair por aí. Refletindo, conclui que usei nos últimos tempos um pequeno número de calçados e que nem precisava possuir os demais. Comprovei a máxima de que usamos o que gostamos ou aqueles que são confortáveis.

Enfim, percebi que possuía um guarda-roupa praticamente obsoleto, precisando ser renovado. Triste, mas boa conclusão para promover novos tempos!

A menção acima de partir para novos tempos tem a sua propriedade! Não apenas no vestuário, mas em tudo. O passado deve ficar para trás, o que é óbvio, mas, infelizmente, lembrado raramente. Por que não aproveitar a ocasião para dar reviravolta geral e reformular conceitos, rotinas, modo de encarar a mim e as outras pessoas, sair do meu quadrado e penetrar em quadrados desconhecidos, para ver no que dará?

Terminada a limpeza, fiquei com a noção de que a consequência principal das coisas terem diminuído foi o meu crescimento como pessoa. Evolui junto com o espaço que obtive. A casa passou a ser mais minha, pois alcancei largueza, trânsito com fluidez e o resgate das coisas com facilidade. Inclusive, ganhei liberdade para as ideias. Incrível, mas está ocorrendo!

Recomendo que experimentem a transformação que empreendi, porém, do jeito de vocês. Saiam da acomodação e deixem a roda girar na direção do novo. Tentar não custa. E se não der certo, pior não ficará. Haverá algo positivo, na certa!

Alfredo Domingos

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Assim são as coisas


Aquele colar de pérolas da vovó, caro à beça, guardado há anos. Desfez-se somente em ser pego, do nada!

Saco de batatas fritas. Ah! Valha-me Deus, que dificuldade para romper! Puft, batatas ao chão! Em relação a isto, o meu pai dizia: - O mau, até “aquilo” atrapalha. Não é não, mas quase.

Amendoim torradinho, salgado. Serviço de bordo da companhia aérea. Poft, bolinhas para todos os lados! Coalhou o avião.

Paliteiro emborcou. Cabeça furada. Já viu, né? Em consequência, pega-varetas armado no tapete.

Saleiro de tampa mal rosqueada, cambeta. Virou, caiu porção exagerada de sal. O bife foi para a cucuia.

Papel higiênico bem enrolado, hermeticamente fechado. Ponta da unha na tentativa de abri-lo. Fenda no rolo. Pronto, folha rasgada!

Clipes multicoloridos. Saquinho de celofane. Enquanto no bolsinho, OK! Buliu para abrir, resultado: fez montinho, feito palha de aço colorida.

Papel-toalha disponível no restaurante. Mão molhada enfraqueceu. Picote fraco. Puxou, partiu!

Brinco de bolinha. Pinçou com os dedos. Procurou buraco na orelha. Dormiu de touca, não achou, peça caiu no vácuo. Claro, que a bolinha abusada foi parar debaixo do armário!

Água gasosa na garrafa plástica. Copo descartável. Colocou o líquido, copo bambeou. Mesa molhada, calça idem!

Batom na cor vermelha. Procurou o beijo. Metrô sacolejou. Pintou a boca tal qual a de palhaço.

Corrida na orla. Vento. Coqueiro balançou. Boné desleixado no cocuruto. Num piscar de olhos, chapéu ao mar.

Brinde com taças de espumante. Emoção. Batida forte. Plaft, cacos em profusão! Tudo respingado.

Navio apitou para partir. Cais cheio. Despedida com lencinho. Mão fraquejou, lencinho boiou.

Bicicleta em disparada, ladeira abaixo. Trombada no poste. Galo na testa.

Cola Super “Qualquer Coisa”. Pingou errado. Borrou e colou; tudo muito. Desgrudar as pontas dos dedos? Quase impossível!

Torneira vazou. Foi dar jeitinho. Borboleta ficou na mão. Jato na cara. Parede e peito encharcados.

Aviãozinho pro bebê comer tudo. Colher cheia de feijão. Filhinho, birrento, mexeu a cabeça. Borrada na boca e no babador. “Shit”!

Sapato novo. Amigo efusivo aproximou-se. Abraço caloroso. Pisada no pé. Camurça prejudicada.

Bisnaga de remédio cuidadosamente acondicionada na caixa. Retirou a primeira vez. Não há um cristão que consiga guardar novamente o remédio sem que a bula fique toda amassada!

Mestre-sala da Escola de Samba evoluindo na avenida. Salto do sapato quebrou. O homem mancou. Prejuízo no julgamento da Escola.

São muitos os atropelos e as mancadas do dia a dia. Inclusive, a falta de sorte. Daí, surge o inesperado. Ocorrem os escorregões. As quedas. As batidas. E outras coisas do gênero.

Constatamos também como o simples abrir de pacotes e embrulhos torna-se tão difícil. Até parece que estes são feitos para não ser abertos. Inesperadamente, os produtos embalados são lançados ao chão, na ânsia exagerada do freguês por consumi-los. Será que as fábricas não concebem maneira que facilite a abertura?

Tia Violante, filósofa da família, sempre vaticinou: quem está na chuva é pra se molhar; ajoelhou, tem que rezar; nem tudo é só vitória; e blá, blá, blá!

O que ela quer dizer é que “assim são as coisas”, com os mais e os menos. Negá-las como são é fugir da realidade. E, concluindo: quem vive está sujeito às decepções e aos êxitos. Paciência e oportunidade, envoltas em um pouco de arte, são necessárias!

Alfredo Domingos