segunda-feira, 12 de março de 2018

Mais uma música



 - Mais uma música, Rodrigo (partner-dançarino-fixo de Ruth). 

- OK, vamos lá!

E saíram a evoluir pelo salão, com passos perfeitos, recheados de evoluções. Como fazem há muito tempo, às sextas-feiras, no grande salão azul do Grêmio Recreativo Boa Esperança

Ruth Siqueira Campos, como orgulhosamente proclama, citando militar participante do Tenentismo, político do Tocantins, nomes de Rua de Copacabana e de Município do Paraná, caminha bem pelos 71 anos, com boa saúde, apesar de alguns remédios próprios da idade. Pratica caminhada, pilates e dança de salão, privilegiando o corpo e a saúde mental, num interessante planejamento de vida. Baixinha, magrinha, cuida sozinha da casa, onde faz todas as tarefas. E, para cumprir essas atividades, é bastante disposta. Conclusão: "safa-se" a contento.

Aventurou-se em aula de artes plásticas, pinturas em tela, mas se entediou. Identificou-se como sem paciência para a atividade. Ficou por pouco tempo. Não era a sua "praia".

Viúva há mais de 10 anos, depois de um casamento harmônico, com um homem quase duas décadas mais velho. 

Há uma filha, porém, enfronhada no mundo, cumprindo destinos diversos, para cursos e passeios, cujos endereços são transferidos para o “WhatsApp”. 

Com uma aposentadoria confortável, além da pensão do marido, ao menos por enquanto, antes que o Governo atue com mãos pesadas, talvez justamente, na previdência, Ruth satisfaz as suas necessidades com tranquilidade, embora não caibam exageros. 

Dessa forma, ela rompe o que seria o “isolamento social do idoso”, um mal principalmente das grandes cidades, que cerceia o direito de as pessoas envelhecerem com amor e companhia. No Brasil, do total de idosos, atualmente, 35% vivem sozinhos em suas casas, tendo que resolver problemas que surgem e espantar a solidão. 

Vamos falar de Rodrigo. Contratado, com valor mensal estabelecido, é exímio dançarino. Formado profissionalmente nas academias de dança, aos 36 anos, possui habilidade, gentileza e sorriso escancarado, para dar e vender. 

No contrato consta, embora não por escrito: 

Da parte dela - o pró-labore, o transporte, a roupa do “professor”, os sapatos, estes de verniz, em duas cores, a cerveja, os tira-gostos, e o que mais aparecer por conta do “serviço” da dança.

 Da parte dele – a bela figura negra apenas deve ser parceiro, para irem, às sextas-feiras (às 18h), e voltarem (até as 23h), e exclusivo dela, para a dança. Ficou estabelecido que, no compromisso semanal, devem ser cumpridos dois períodos de hora e meia para dançar e meia hora de descanso. 

Podemos estranhar o rigor da combinação, e até mesmo o porquê dos honorários pagos a Rodrigo. Afinal, é uma diversão. 

 Ruth imagina que, feliz ou infelizmente, quando se paga, existe seriedade, além de considerar que somente desse jeito conseguiria a certeza de ter o acompanhante, inclusive bem trajado. No contrato verbal, bem especificou: 
- Pagarei o valor pedido, mas não perdoarei atrasos nem faltas, em relação ao acordo feito, exceto em situações extremas, que deverão ser comunicadas com antecedência sensata ao horário previsto para a saída. 

No decorrer do trato, de quando em vez, fica furiosa diante de atrasos e faltas. No entanto, é condescendente.

Rodrigo, regularmente, cumpre o acordado. Ocorrem, porém, deslizes no tempo do descanso. Ele aproveita para dançar com outras pessoas mais jovens, por vontade própria, o que é válido, descaracterizando uma escorregadela. 

 Nesse desenrolar, Ruth leva a vida agradavelmente, em condições gerais compatíveis com a sua idade e com o seu poder aquisitivo, e sempre aguardando, ansiosa, as terças, quintas e sextas-feiras para o exercício do pilates e da dança, respectivamente. 

A propósito, estudos apontam que a solidão ataca a saúde física e mental das pessoas, mas nas idades avançadas isto é mais intenso. Estudiosos da Universidade de Chicago, nos EUA, descobriram que o isolamento aumenta o risco de morte em 14%, entre os que têm 60 ou mais anos. Espantosamente, a Universidade de Brigham Young, também nos Estados Unidos, comparou estatísticas de mortalidade e concluiu que a solidão é tão prejudicial à saúde quanto fumar 15 cigarros por dia ou ser alcoólatra. Para completar, há ainda a revisão de 23 artigos científicos feita por pesquisadores da Universidade de York, no Canadá, indicando a triste realidade de que estar isolado aumenta em 29% o risco de doenças coronarianas e em 32% o de acidentes vasculares. 

Por sua vez, a Organização Mundial de Saúde (OMS) divulga, em seu Relatório Mundial sobre Envelhecimento e Saúde, que o envelhecimento saudável ultrapassa o limite da ausência de doença. É preciso que o idoso tenha habilidade funcional, inserção social e sistemas de saúde diferentes dos modelos curativos. 

No Brasil, abandonar idoso (incapaz) é crime, com pena de multa e detenção de seis meses a três anos, de acordo com o artigo 133 do Código Penal. Há, em acréscimo, os artigos 97, 98 e 99 da Lei do Idoso, de nº 10.741, de 2003. 

Existem 3 tipos de abandono de incapaz: o intelectual, usado para o menor, se os pais privarem o filho de frequentar a escola; o moral, quando for ignorada a existência da pessoa, principalmente no segmento afetivo; e o material, na situação de o idoso não ter condições materiais de subsistência. 

No caso de Ruth, entendemos que as coisas caminham adequadamente, em decorrência da existência de recursos e, notadamente, em função da sua sabedoria, resolvendo-se de várias maneiras, criando boas oportunidades para si. 

Para terminar, ressaltamos que o título deste texto tem a ver inicialmente com a dança, mas indo em frente para as surpresas e as brechas, que surgem ao longo das nossas vidas. No abrir de janelas, portas, quaisquer chances, sempre teremos "mais uma música". Resta-nos sair dançando, no ritmo que couber para nós.

 Alfredo Domingos 

Fontes de pesquisa: 1) O Globo, 4/3/2018, matéria de Clarissa Pains – Órfãos na velhice: isolamento social aumenta em 14% risco de morte. 2) Jornal do Brasil, 4/3/2018, matéria de Celina Côrtes – O filão da Terceira Idade. 3) IBDFAM/TJMT, 22/3/2016, matéria de Mariana Vianna – Abandono de incapaz é crime.

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