quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

A confissão de Adelaide

A senhora é praticamente a minha última esperança. Por isso estou aqui. Com sinceridade não aguento mais tanta pressão. Tomei consciência do meu problema quando era ainda menina. De lá para cá não tive mais sossego. Vivo escondendo a situação. A minha mãe aconselhou esconder. Esse jeito me trouxe uma carga danada. Dissimular pela vida toda é difícil. Trago este fardo pesado. É demais! Inicialmente é preciso revelar o descontentamento acerca do meu próprio nome – Adelaide Ozório Grosso. Trago comigo dois nomes masculinos que me desagradam. Sendo que “Grosso” me dá arrepios. Ele tem tudo a ver com o meu problema. O destino quis assim. Não me poupou do castigo. Ao pensar nisso tenho náuseas. Fico abalada. Sofro de uma eterna constipação. Ou pode chamar de obstipação. Em linguagem clara sofro pra caramba de prisão de ventre. Quando quero ser fina digo que tenho retardo do trânsito intestinal. Embora a medicina esteja hoje avançada o meu caso é considerado doença. Eu posso? Recuso convites de passeios para não me expor. O senso comum indica uma situação vexatória. Imagine que em bate-papo com amigos há de repente mudança do rumo do assunto. Qualquer que seja ele. O comentário pode estar acalorado sobre uma partida de futebol envolvendo até Vasco e Flamengo que logo alguém arruma um jeito de perguntar por mim. Surge o maldito tema. A preocupação reside se eu me resolvi ou não. Absurdo! Fico superconstrangida. Não sei onde me enfio. Questiono brava pela falta de matéria melhor. O que desvenda o segredo e me coloca desprotegida é justamente a parte mais desagradável do infortúnio. É quando vem o alívio. A consequência é terrível. Devastadora. A emenda adquire condição pior que o soneto. Após a prisão de ventre acontece o desembaraço do material. As dimensões são assustadoras e desproporcionais ao meu tamanho. Afinal sou do tipo mignon. As pessoas querem saber se precisam fatiar o “estrupício”. O deboche toma conta por mais cerimoniosos e distantes que sejam os envolvidos. Não entendo tanto abuso. Olha que trato todo mundo com cortesia. Como manda o figurino. Sou professora. E não é que a história já invadiu a escola? Teve colega indagando pelo meu intestino. Na hora fiquei muda. Só olhei para o indivíduo. Não excedo no que faço. Meu modo de ser é discreto. Idem para a forma como me visto. A Senhora vê a sobriedade da minha roupa. Nada de decotes ou alças. Muito menos saia curta. Em época passada usava diariamente casaco. Bastava sair à rua. A temperatura não importava. Acho que deve haver relação com o problema. Sou toda presa. Trancada. Até os meus cabelos estão constantemente amarrados em rabo de cavalo. Ao longo da vida não me coloquei de braços cruzados diante da desventura. Procurei me cuidar do imbróglio. Percorri muitos médicos. Tomei incontáveis remédios. E segui imenso cardápio de receitas caseiras ou não. Além das igrejas, estive em rezadeiras e nos centro espíritas. Antes de deixar a Senhora falar vou mostrar a última brincadeira feita pelo meu pai e pelos meus irmãos. Foi recente. Um final de semana em Santas Águas com parentes e alguns amigos. Preliminarmente, devo dizer algo. Dias antes viajei a Campo Geral. Espere o fim para sentir como foi longe a tal brincadeira. Com antecedência houve o preparo de um falso comunicado. Seria oriundo do Prefeito de Santas Águas. O mote obviamente envolvia os meus escandalosos dejetos. Montagem pura. Farsa para divertir os outros às minhas custas. Vergonha para o meu lado. Tenho a prova. Veja aqui o papiro:

COMUNICADO

A Prefeitura Municipal de Santas Águas comunica que a permanência da Professora Adelaide Ozório Grosso no Município está subordinada aos cuidados mínimos necessários, de acordo com os tratados internacionais de saneamento básico, no que tange à eliminação de dejetos fecais que, em nenhuma hipótese, deverá prejudicar o ecossistema marinho. Informamos que esta Prefeitura tomou todas as providências no sentido da prevenção, inclusive inaugurando um novo emissário submarino, com capacidade de vazão de 800.000.000 l/min, e a montagem de um plano de pronta evacuação da região, com apoio da Força Nacional de Segurança, no caso de um descontrole. As cidades vizinhas, no raio de quatrocentos quilômetros, foram notificadas da possibilidade de uma hecatombe ecológica. As nações africanas do Atlântico foram orientadas a tomar medidas acauteladoras contra uma possível onda gigante. Conhecendo a dificuldade que a citada Professora terá para evitar um desastre ambiental no Município e no mundo, serão mantidos em plantão constante dois guardas sanitários e um engenheiro de tubulações. Estarão disponíveis os mais diversos equipamentos, tais como desentupidores hidráulicos, perfuratrizes de ponta de diamante, medidores de bitola; além de grande reserva de creolina e outros solventes industriais. Complementam a relação tanques de eliminação de lixo atômico, operados pelos veteranos de Cubatão e Chernobyl, dragas e mergulhadores de combate.

A seguir listamos as orientações pertinentes:
1) usar continuadamente fibras alimentares;
2) evitar a ingestão de gorduras e produtos possivelmente deteriorados;
3) consumir constantemente laxante;
4) não ingerir nenhuma comida vendida por ambulantes em locais públicos; e
5) utilizar banheiros químicos.

Cabe registrar, ainda, que o Prefeito de Campo Geral enviou oficialmente o seu repúdio pela catástrofe deixada pela Professora em sua região, com o prejuízo da produção de soja daquela área. Dessa forma, resta-nos informar que a cidade de Santas Águas encontra-se em ALERTA VERMELHO, estando preparada para operar o seu sistema de proteção aos seres vivos.

Finalizando, cumpre registrar que todo o cuidado por parte da Professora será pouco.

Prefeitura Municipal de Santas Águas, 8 de janeiro de 2010.

Rubão Arruda – Prefeito


Alfredo Domingos

Nota do autor: os nomes usados são fictícios, das pessoas e das cidades; mas a situação é real. Foi tentado dar ritmo de desabafo, de pressa, à história; assim, não foram utilizadas vírgulas na confissão.

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