quarta-feira, 11 de abril de 2018

A herança do vinho




Como herança do marido, mulher recebe vários bens. Entre eles, uma preciosa adega, detentora de rótulos, pela qualidade, capazes de disputar com aqueles cobiçados pelos alemães nazistas, na 2ª Guerra Mundial.

Tempos depois, a viúva, dando vez a um avassalador amor, com um jovem com menos idade do que a grande parte dos vinhos estocados, consumiu, uma a uma, as garrafas raras e premiadas, deixadas pelo marido, arranjando motivos para comemorar e beber. Em poucos meses, ficou clara a terra arrasada, ou melhor, ficaram arrasadas as prateleiras. 

Baco, deus do vinho, deve ter coçado o barrigão, de alegria. 

Qualquer coleção tem caráter frustrante. Ela existe para a contemplação e para a eternidade. Talvez o próprio formador do acervo não o aproveite. Não se consome de imediato, como bombom, sorvete ou queijo. 

Olha-se, admira-se, mostra-se aos amigos, e pronto. 

O caso do vinho é mais prático, pois, no futuro, se não estiver avinagrado, alguém o beberá, saudando o dono, que se foi. 

Mas quando se tratam de chaveiros, latas vazias de cerveja, cinzeiros, etc., os que ficarem darão cabo ou continuarão na procissão de apenas juntar e apreciar. 

Acho triste que não se dê continuidade a uma “obra” de ajuntamento, que num determinado período teve graça ou afeição de alguém. Mas o certo é que não dominamos as vontades alheias. 

Tive, na minha vida de sessentão, inúmeras coleções, de quase todas as bugigangas. 

No entanto, resolvi, num domingo apagado de inverno, desfazer-me de quase tudo. De uma única vez. O dia feio deve ter ajudado. Tomar medidas drásticas em dia de sol é mais difícil. Exceção foi feita para a ajuntada de fusquinhas. Eles são os meus xodós, depois da neta, a Laura! Dessa forma, não tive coragem de defenestrá-los. Cedi! 

Mantive-os, e acrescento outros, sempre que surgem oportunidades. Chego a ganhá-los de amigos e parentes viajantes. Possuo exemplares de várias partes do mundo. Loucura? Sim! Santa loucura, que não atrapalha, não dá mofo, nem perde a validade. Os carrinhos estão arrumados em formatura, nas prateleiras finamente elaboradas pelo Seu Pepe, velho marceneiro espanhol, que mais parecia um escultor, com as suas poucas, porém, milagrosas ferramentas. 

Os fuscas, em resumo, são intocáveis, para o depois, sei lá para quando ou até quando... 

Quanto aos livros, não os considero coleção. São “do uso”. Para o gasto diário. Leitura e releitura. Anotações, orelhas, marcações, etc. Num vai e vem constante, entre mim e a estante. Eles representam a vida. A janela aberta. O deslumbramento. 

Observo os livros como biscoitos, que saborearei daqui a pouco. Aqueles que têm sabor de segredos e de renovadas surpresas, a cada nova vista. 

Alguns defendem que as coleções sufocam, juntam poeira, ocupam espaço e atrasam a vida. Vão além, dizendo que temos de “desapegar” – verbo da moda. 

Alego, em contrapartida, que quando vem do gosto, seja o que for, gostado está. Dane-se o resto! 

Não se deve acumular mágoa, raiva e outros sentimentos ruins. Se a satisfação está presente, OK! Vá em frente! 

Ferreira Gullar, o poeta, sabiamente, comentou que os pertences mais íntimos contavam a sua história. Feliz, acrescentou que a esposa havia disponibilizado um canto na sala, somente para as suas coisas. Entre as peças, destacava-se um móbile, feito por ele mesmo, que dava charme ao tal canto. Cheguei a vê-lo em foto. Regozijei-me! 

Cabe, então, uma pergunta muito utilizada, sobre diversos objetos: 
- Para o quê serve isso, hein? 
Resposta tirada do coração: 
- Pra mim. Ora, bolas! 

Voltando ao vinho, ele envolve enorme prazer. Bebe-se gole a gole como se cada um fosse o último. No Brasil, aprendeu-se a beber vinho, embora, nos últimos anos, tenham sido consumidos, em média, 2,0 litros/ano, per capita. O consumo é pequeno, mas para um país com temperatura quente, predominância da cerveja e preço relativamente alto do produto, até que se justifica. Para termos noção, cada português bebe, em média, 54 litros, por ano. Quantidade extremamente superior a nossa. 

Os homens, ultimamente, foram para a cozinha, principalmente para o lazer, e levaram debaixo do braço a garrafa de vinho. Natural, dessa forma, o surgimento, mesmo que aos poucos, do hábito de consumir a bebida, entre nós. 

Tecnicamente, os vinhos devem ser envelhecidos, maturados, iguais às pessoas. O tempo, nesse caso, atua para melhorar o resultado, dar sabor e corpo, da mesma forma que se espera para os indivíduos. 

Alfredo Domingos

2 comentários:

  1. Espero, um dia, que Deus nos reserve um momento para que possamos abrir uma garrafa de vinho e falar de seu blog...
    Parabéns pelas postagens!

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  2. Amigo Diego,
    As oportunidades são raras mas não inexistentes. Claro, que teremos chance da conversa e do vinho. Será momento agradável!
    Meu abraço,
    Alfredo Domingos

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