quarta-feira, 9 de maio de 2018

O nécessaire do garçom



É mais do que conhecida, e repetida, no âmbito da minha família, a história do “nécessaire do garçom”. Começou a partir dos anos 1980, e perpetua-se até hoje, com versões turbinadas e invencionices sem fim.

Turma numerosa e festeira inventava motivos para promover eventos. A “sede” da festança era a casa grande da avó Maria Rosa, com dois ambientes de sala, varanda fechada e outra aberta, vários banheiros e, principalmente, enorme cozinha, com todos os equipamentos que a tecnologia da época permitia. 

Utilizando a memória para passear pela casa, lembro-me das pesadas cortinas das salas, com suas borlas gigantes, com as quais, escondido, jogava bola usando a cabeça. Na época era garoto, mais ou menos com dez anos, e curtia uma bagunça. 

Em ambiente agradável, a anfitriã era disposta a bem receber, cuidando de todos os detalhes para proporcionar bons momentos. 

Um dos elementos importantes nos saraus era o garçom, sempre o mesmo, Seu Paiva. Impecavelmente trajado, era um velhinho baixinho, empertigado, rápido na locomoção, feito um azougue, e profissional esmerado, tendo gosto em servir. 

A cada festa, estava lá o Seu Paiva, que, com o passar do tempo, era quase da família. Sabia de cor as preferências dos convidados. Uísque cowboy para um, com muito gelo para outro, suco de laranja para uma, e assim agradava a todos. 

Prestativo e cônscio do seu metiê, ele portava nos bolsos, sem esquecimento, isqueiro e lenço. Na cozinha, mantinha, para as situações emergenciais, água quente com limão e pano. 

As comemorações foram ocorrendo, no ritmo em que a vida sorria por meio de acontecimentos felizes. 

Para não falarmos apenas das coisas lisas, sem imprevistos, vamos trazer algo diferente para a história das festas e do garçom. Após umas das reuniões, constatou-se que o garçom havia esquecido o seu nécessaire. Foi-se, altas horas, para casa, com pressa! 

A partir desse dia, a coisa desandou! Por obra do destino, por fatalidade ou sorte, o homenzinho sumiu! 

A avó telefonava para ele quase que diariamente. Queria combinar para que viesse buscar o nécessaire. A cada ligação correspondia uma desculpa. A entrega não se consumava. Foi oferecido um encontro com alguém da família, no Centro da cidade, para facilitar. De nada serviu! Até que a dificuldade fez com que os contatos escasseassem. Os intervalos foram aumentando. E os contatos pararam... 

Pararam mesmo, porque o telefone do garçom deixou de chamar. Batia ocupado, direto. 

Houve, por conseguinte, do nada, um ponto de inflexão. As festas, aquelas de arromba, foram também diminuindo e ficando menores. Não havia mais necessidade de alguém para servir. 

E o nécessaire? 

Foi restando. Ora aqui, ora ali. Virou estorvo. Não possuía lugar certo. Objeto pequeno, porém, com consequências gigantes, elemento estranho ao meio, em função de ser de outrem. Talvez, pura implicância.

Passamos a usá-lo como sinônimo de coisas incomodativas. Querendo dizer que alguma coisa estava atrapalhando, sem local definido, lembrávamo-nos do nécessaire do garçom:
- Isso parece o nécessaire do Seu Paiva. Não sabemos onde colocar. Coisa intrusa! 

Surgiu, depois de algum tempo, a indagação sobre o quê continha a bolsinha. Antes, não carecia de saber, não havia a curiosidade. Mas de repente, veio à tona! 

Todos queriam conhecer as entranhas. Motivada, então, a avó Maria Rosa rompeu o mistério e puxou o zíper. 

Nada mais simples existia na bolsinha cinza surrada: uma escova de dente e a respectiva pasta. 

Sem glamour ou impacto. Básico do mínimo. 

Inclusive, o achado inibiu a sensação de culpa, por não devolver. Vai saber se não foi o conteúdo óbvio e barato que desmotivou o próprio dono a vir buscar? 

As nossas coisas são “nossas” e marcamos bem a fronteira em relação às coisas dos outros. “Cada um no seu quadrado” – eta, que expressão pertinente! Essa fronteira é eivada de ciúme. Pode ser um automóvel ou um lápis. Ao esquecer o nécessaire, o Seu Paiva deixou parte sua para trás, que não pertencia a quem ficou. Se fosse algo usável por terceiros, poderia não incomodar tanto, tiraríamos até proveito. 

Atribuo à desnecessidade de servir ao pessoal da casa o principal motivo para a tal “implicância”, antes e depois do conhecimento do que havia no interior do nécessaire, que, aliás, continua na sua andança pela casa, ocupando praticamente todos os espaços vagos. 

Alfredo Domingos

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