quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Presente de Grego


Ando ressabiado e sumido. Recolhido. Uma gripe durou quinze dias.

E sonhos, muitos loucos sonhos. De quase urinar na cama. No último, acordei suado e espantado. Não consegui, ainda, esquecer o danado do sonho.
Tentarei contá-lo, não sei se chegarei às minúcias.

“Toque da campainha do apartamento. Fui atender. Na soleira, dois policiais à minha procura.
 Queriam fazer entrega de algo que diziam me pertencer. Mal deixaram a coisa comigo, sumiram.
 Num estalo.
 Sabe de que se tratava? Fico apavorado quando me lembro! 
Era uma cabeça humana com o respectivo pescoço. Cabeça de homem, ornamentada com barbicha e costeletas. Os cabelos eram ralos, ruivos. Os olhos? Não sei. Nunca os vi.
 A figura era desconhecida. Fiquei com o troféu, louco para me ver livre. Que terror!
 Estive em todos os cemitérios da cidade. Não fiz escolha de religião. Quis, inclusive, cremar.
As respostas foram iguais e negativas. “Não enterramos cabeça sem corpo, além do mais, sem documentos.”
 Imaginei, pela cabeleira ruiva, ser alguém do norte da Europa. Pirei na batatinha! Estive em várias embaixadas. Sem sucesso.
Isso foi feito por dias. Extenuado e desiludido, voltei para casa.
Enquanto não surgia outra solução, veio-me o insight de guardar na geladeira.
Aliás, preciso dizer que recebi o material congelado, depois, com o rolar do tempo, estava esquentando, quase ficando vivo! (por sorte, como revelei, os olhos estavam fechados – pense se estivessem abertos, à espreita. Cruz-credo! Arre!)
Nesse ínterim, tive a impressão de que a barba do “de cujus” crescia. Esquisito isso. Talvez fosse o efeito do meu transtorno emocional.
Percebi, assustado, que a boca relaxou e alguns dentes ficaram à mostra. Situação macabra, de um quase sorriso.
Nos intervalos das tentativas de resolver o impasse, buscava ferozmente descobrir quem era o dono daquele pedaço de gente. Cadê que reconhecia?! Que presentão de grego!
Voltando à geladeira, desalojei parte do que havia no interior e soquei o “troço” para dentro, como pude. Fechei a porta com pressa, ofegante. Fiquei uma eternidade agarrado, de costas, à geladeira, braços firmes para trás, querendo deixar o segredo inviolável.
Aí, lembrei-me de meu pai. Morávamos juntos. Em nome da verdade, eu é que me aboletei na casa dele, de intruso.
Se ele visse, de certo, não aprovaria guardarmos ali o estrupício, ao lado de carne, queijo, frutas e tudo o mais que comeríamos. Como?! Elementos vivos ao lado de coisa morta? Indesejável. Nojento.
Continuei agarrado.”

Acordei!
Alívio do pesadelo ou início do pavor?
A prudência indicou nem chegar perto da geladeira. Vai que...
Sentado na cama, refleti: se verificar, não foi tão ruim assim. O sonho pode ter representado, afinal, um prêmio. É, sim, fui premiado por ter recebido o cérebro de alguém, porção pensante do corpo! Ganhei a inteligência, o talento, o pensamento. Para o restante, não vale cogitar profundamente.
Em resumo, sobrou para mim aquilo que é a essência do existir, apesar de ser um retalho de morto. Estar sem vida pode ser desconsiderado. Preferi encarar dessa forma.
Pior seria se o recebido tivesse sido um joelho arrebentado ou um pé cascudo. Não haveria explicação para explicar. Desanimador.
Sabe que me conformei com o sonho e com o presente decorrente? O sonho, pensando bem, sonhara, foi-se.

Alfredo Domingos

(por questão de justiça, revelo que Allam (escreve-se assim mesmo), meu primo, deu-me o motivo deste pequeno conto. O tema, verdadeiramente sonhado, veio dele)

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