terça-feira, 10 de outubro de 2017

Romaria


É de sonho e de pó                                                  
O destino de um só
Feito eu perdido em pensamentos
Sobre o meu cavalo
É de laço e de nó
De gibeira ou jiló                                                
Dessa vida cumprida a sol

Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
E funda o trem da minha vida
Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
E funda o trem da minha vida *1

O meu pai foi peão
Minha mãe, solidão
Meus irmãos perderam-se na vida
A custa de aventuras
Descasei, joguei
Investi, desisti
Se há sorte eu não sei, nunca vi *2

Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
E funda o trem da minha vida
Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
E funda o trem da minha vida *3

Me disseram, porém,
Que eu viesse aqui
Pra pedir de romaria e prece
Paz nos desaventos *4
Como eu não sei rezar
Só queria mostrar
Meu olhar, meu olhar, meu olhar *5

Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
E funda o trem da minha vida
Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
E funda o trem da minha vida

Compositor: RENATO TEIXEIRA DE OLIVEIRA (primeira gravação em 1977, por Elis Regina)

O Programa Globo Rural (8 de outubro de 2017) e a Revista Globo Rural, de outubro de 2017, considerando os festejos de 300 anos (12 de outubro) do encontro, no Rio Paraíba, da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Padroeira do Brasil, trouxeram uma homenagem à canção “Romaria”.

Alegrou-me a homenagem! Resolvi partir para a escrita, a reboque da inspiração deixada pelos veículos de comunicação.

A letra, de Renato Teixeira, que também fez a música, foi colocada acima, para deleite de todos nós. Aproveitemos, então.

Claro, que é música conhecida sobremaneira, ainda mais na voz marcante de Elis Regina, cuja mensagem de fé se tornou muito forte. Ao ser executada, comove e faz refletir, seja nas romarias a pé, nas igrejas ou nas apresentações da TV.

A melodia traz a sensação de estarmos numa procissão, em plena sessão litúrgica, pela carga religiosa e pelo ritmo. Olhar para si é mandatório. A contrição faz-se necessária. O momento assume atmosfera diferente e sagrada. Maria, a Mãe de todos, ressurge em cada rito onde a música permeia. Gente, a emoção está presente ao som de Romaria!

Esmiuçando a letra, encontramos curiosidades e licenças poéticas. Tudo a que o poeta tem direito. Vamos percorrê-la. 

Até *1 (vejam na letra), o autor se identifica como cavaleiro, caipira, indicando o trem como representante da sua vida passante, e nos apresenta Nossa Senhora de Aparecida, pedindo luz. Curiosa é a inserção do “jiló”, carregando o seu amargo para indicar o difícil da vida, complementada por “vida cumprida a sol”, colocando a aridez inerente ao sertanejo. 

Até *2, o autor trata da família. O pai na lida, correndo mundo, a mãe solitária nos trabalhos domésticos. Os irmãos nas traquinagens. Ele no dia a dia comum, sem, porém, encontrar a sorte, que costuma aparecer simbolicamente, assim mesmo quando se faz algo extraordinário, não sendo, na verdade, a tal sorte caída do céu, do nada, mas fruto de esforço, de labuta. 

Até *3, sequência repetida, sem novidade. É interessante assinalar que o autor, ao ser perguntado sobre como interpretar “ilumina a mina”, simplesmente, respondeu: - gosto do som que ficou em “...mina” a “mina”. Criação de artista a gente aplaude, não é?

Até *4, trecho pequeno mas recheado de fé. São abrangidas a “romaria” e a “prece”. A primeira no ir ao encontro do momento de agradecer e de pedir, e a segunda exprime a devoção, a súplica. Ainda, consta do pedaço “Paz nos desaventos”, que segundo Renato Teixeira, “desaventos” poderia significar aquilo que está desarrumado, precisando de paz, como ventania inconveniente. Contudo, Renato usa de sinceridade ao confessar que não sabia da inexistência da palavra nos dicionários. Se foi inventada, não importa, coube bem no conteúdo proposto. Valeu!

Até *5, trata-se de espécie de desabafo. O olhar enternecido e, também, esperançoso de tempos melhores substitui a reza que lhe falta. Dessa forma, nem tudo está perdido. Renato, com sua voz mansa, deixou escapar que não sabia como terminar a estrofe. Depois de matutar, obteve fácil solução: repetir “meu olhar”. Talvez não tenha imaginado que a repetição ratificou a crença e deu continuidade ao olhar devoto. Aqui a melodia entra num remanso, dá uma travada, que combina com esse olhar em oração e em espera.

Até o final, houve outra volta ao que se pode chamar de “refrão”, com ênfase para: “Sou caipira, Pirapora nossa”. Este “nossa” afastado de Senhora de Aparecida, que desponta na linha abaixo. Não sei, não, mas está com pinta de ter sido imaginado com duas funções. Apadrinhar a cidade de Pirapora do Bom Jesus, chamando-a de “nossa”, amavelmente, e deixar “Senhora de Aparecida” triunfar sozinha, dando luz à mina. Vai saber...

Vamos curtir, daqui para frente, um pouco mais “Romaria”! Transformá-la em música de fundo de nossas vidas, sofridas ou não. Tê-la nas aflições, para redobrar forças, porém, não desprezá-la nos momentos prazerosos, em demonstração de sabedoria.

Alfredo Domingos

Um comentário:

  1. Sobre a canção, nota-se uma preocupação constante em manter a harmonia entre as palavras, utilizando-se sempre das semelhanças fonéticas para produzir uma sonoridade única desta música... Não só a letra é linda, mas também o arranjo proposto dos instrumentos... Esta é uma das músicas mais lindas que já produziram, na minha opinião. Talvez pelo tom nostálgico que me traz, ao me remeter à minha família agreste, do interior do Ceará... Talvez pela emoção carregada nas palavras da canção... Vai saber!

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