Liberdade para amar
A botica do Aperibêncio, após o
horário de funcionamento, virava um ponto de encontro de clientes e amigos. Ali
rolava um bom papo, muitas histórias. Discutíamos basicamente futebol, política
e amenidades da cidade. Surgiam passagens engraçadas de cada um de nós, também.
As nossas reuniões faziam concorrência direta aos bares da pequena Guapi, ao
menos por um período do dia.
Eu era costumeiro. Passava por lá
todo final de tarde. Na encolha, na base do improviso, eram servidos bolinhos
de aipim e aguardente. Havia uma bancada de canto estrategicamente instalada
para apoio. Cada um deixava no caixa o que bem quisesse. O negócio do
estabelecimento era medicamento.
Aperibêncio (é melhor passar a chamá-lo de Peri, será mais fácil) e eu éramos solteiros, apesar de estarmos na casa dos
quarenta. Fazíamos muitas confidências. Ele me contou, orgulhoso, que só
gostava de moça virgem. Como isso era raro na cidade, de quando em vez, viajava
para “pescar” alguma em outras plagas.
A partir do momento em que
comecei a namorar Vanja, ela me acompanhava até a botica.
Um dia, após ele me trazer uma
batida esquisita, elaborada lá dentro, desmaiei. Depois, foi contado que Vanja
e o farmacêutico providenciaram a minha remoção para casa. Os dois tinham
ficado amigos. Nada mais justo do que cuidassem juntos de mim.
Vanja era uma morena dessas
imperdíveis. Os homens da cidade, desimpedidos ou não, davam em cima dela.
Apesar de eu fazer um tipo bem
comum e com nenhuma grana para luxar, ela entrou
na minha, como se diz. Sorte deste que escreve.
Passamos a namorar
compulsivamente, sempre que surgia oportunidade, mesmo morando em casas
separadas. Dávamos o nosso jeito, com certo suspense, o que apimentava o
relacionamento.
Eu tinha ciúmes. Pudera, o seu
trabalho era a venda de roupas íntimas femininas, andando na rua até escurecer,
de porta em porta. Incomodava-me a falta de endereço fixo, de uma referência para
a labuta. Indo bater aonde só Deus sabia.
Voltando ao desmaio, acordei na
minha cama, tendo na cabeceira um bilhete de Vanja: “Cuidamos muito bem
de você. Acho que a causa do ocorrido foi o pileque. Amanhã, procure o médico
ou o próprio Aperibêncio (aqui tem que ser o nome completo, trata-se do
original do bilhete)”.
Sempre gostei de bilhete.
Comunico-me bem por esse meio. Na escola, fui bom aluno de português. Para
todas as namoradas usei e abusei do bilhete. Era uma boa forma de galantear.
Mas esse em especial me deixou intrigado. Observei que o “cuidamos muito bem”
estava sublinhado. Estranho. Confesso que fiquei com a pulga atrás da orelha.
Com o tempo passando, as reuniões
a três na botica ficaram constantes. Os outros participantes foram rareando.
Peri, então, veio com a invenção
de que ganhara um carro velho do tio, e necessitava da minha ajuda para
desenguiçá-lo. A batalha iniciaria tendo que ir ao sítio onde o veículo estava guardado,
há anos. Nunca tive o menor jeito para mecânico, mas topei.
Aliás, é o momento certo para
falar das minhas atividades profissionais e pendores. Nunca tive aptidão para
os trabalhos manuais. Sempre fugi das coisas tecnológicas e complicadas. E para
completar, da matemática queria distância.
Porém, sempre me agradou a
escrita. Quando estudante, fazia uns primores de redação. Criava personagens e
situações que eram verdadeiras maravilhas.
Bem, assim, trabalhei no Cartório
da cidade, no Jornal, na administração da Academia de ginástica e no escritório
do Supermercado Joelma. Neste último, até me dei bem, dando uma de fiscal,
pegando roubos e prejuízos provocados pelos clientes e funcionários. Elaborava
relatórios diários, apresentando os acontecimentos indesejáveis. O dono da loja,
ao mesmo tempo em que passou a confiar bastante em mim, cobrava cada vez mais a
minha dedicação, sem descanso, o que me saturou, fazendo com que pedisse
demissão. Vou revelar que o salário deixava a desejar pelo que eu precisava me
doar.
Passei a ter o meu próprio
negócio. Abri o primeiro sebo da cidade. Numa lojinha de esquina. Falando na
esquina, indico o que me dava o maior prazer - os nomes das ruas. A esquina
juntava a Rua dos Amores com a Rua da Alegria. Sabe que fiquei todo orgulhoso?!
Adorava o que fazia. O meu mundo era aquele. No início, não sobrava dinheiro, apenas
pagava as contas, e ia curtindo.
Certamente, Peri sabia da minha
incapacidade para a missão a mim confiada; aquela de ressuscitar o carro. Contudo, insistiu
na companhia.
Há um detalhe a ressaltar. Indaguei
se Vanja poderia ir conosco. Ele negou, alegando não ser trabalho de mulher.
A propriedade ficava metida no
cafundó do Judas, longe da cidade, num lugarejo quase inexistente. Com muita
subida para enfrentar.
A casa principal estava em
ruínas. O terreno prolongava-se para abaixo, bastante acidentado. Em condições
de uso, somente um pequeno apartamento com sala, quarto e banheiro. Local mal
provido de móveis e equipamentos. O mínimo do mínimo. O melhorzinho de tudo era
uma cama de casal, arrumada com lençol, travesseiros e colcha.
Não percebi sinal do tal tio.
Algo me dizia que ele não usufruía dali, muito menos da cama. O proveito devia
ser de outros.
Porém, o carro estava lá. Era um
Pontiac verde-claro, duas portas, e mais velho que a Sé de Braga. A pintura era
completamente desbotada. Como estava debaixo de uma amendoeira, tinha quase
toda a lataria atingida pelos frutos. Uma calamidade.
Peri tinha pressa. Estava
impaciente.
Duvidei de que “aquilo” pudesse
se movimentar. Uma coisa foi notada por mim. Os pneus estavam novos. A intenção
clara era que a lata-velha corresse mundo e rapidamente.
Fizemos de tudo para o motor
funcionar. Quer dizer, fizemos não, Peri fez. Foram postas bateria nova e
gasolina. Não houve, no entanto, solução. Operação custosa aquela!
Peri resolveu fazer a locomoção
empurrando. Na base da força. Coube a mim sentar ao volante, e a ele
esfalfar-se em deslocar a geringonça. Pensei bem, e resolvi que ficasse para ele
a missão penosa. Assenti.
Pois bem ou pois mal, com a força
empregada começou o deslocamento pelo gramado inclinado, e um certo embalo foi
obtido.
A minha euforia por achar que a
empreitada estava por terminar durou pouco.
Percebi, tomado de pânico, que o
terreno acabara no fim da descida. O carro estava solto no ar pronto para se
espatifar. Terra firme só via lá embaixo, no vale entre os morros. A minha
visão escureceu. A cabeça foi tomada por tontura brava. Estava perdendo a
consciência.
Tempo só tive para observar,
muito fugazmente, a cena de paixão entre Peri e Vanja, comemorando aos beijos a
liberdade para amar, e, claro, o meu fim. A minha última lucidez foi por conta
da lembrança de que Aperibêncio, sujeito safado, apenas gostava de moça virgem.
Foi o que vi, não???
Alfredo Domingos
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