quarta-feira, 25 de março de 2015

Tudo por causa do calor

 Encontrei um amigo no centro da Cidade, que esbaforido sentenciou:
- Tudo que somos e pensamos, aqui no Brasil, é por causa do calor. Somos cabresteados pelas escaldantes temperaturas!
Em seguida, ao acaso, entrei num vagão do metrô sem ar condicionado. Consegui apenas uma nesga de espaço para ficar em pé, espremido. Tanto era o aperto, que uma senhora, repleta de bolsas, esbarrou em mim, fazendo com que os meus óculos fossem ao chão. Confusão!
De imediato, voltei o pensamento para o tal amigo. Ele atribuíra, há pouco, culpa irrestrita ao calor por todas as circunstâncias que enfrentamos. Estava certo!
O calor destempera. Aflige. Irrita. Transborda. Enlouquece. O meditativo não se concentra. Um meticuloso relojoeiro não sobrevive. O ambulante cambaleia. O gari não consegue suportar. O motoboy capitula imerso num barril de gelo. A tia não passa a linha de costura pelo buraco da agulha. A banda recusa-se a desfilar. Muito menos a moça permanece na janela.
São exemplos de impossibilidades! O calor modifica o nosso dia a dia.
Vêm, então, as nefastas consequências: todo mundo grita, não há como falar baixinho, somente na poesia amorosa; exposição nas varandas e portas é fragrante; destempero assola, levando ao xingamento, aos impropérios; discussões nas filas são frequentes; meninos são travessos; dedinhos não param nos celulares, por conta da ansiedade e da euforia; mães desesperadas surram os filhos em público; casamentos são desfeitos na rua; mulheres ciumentas rasgam as roupas, umas das outras, perante plateia estupefata; calçadas permanecem cheias de gente até tarde da noite; baratas invadem as casas; cigarras morrem secas de tanto cantar; passarinho suga água de minguadas poças; os açudes fenecem; os volumes mortos estão pra lá de defuntos; toalhinhas, conduzidas nas mãos, acompanham seus donos a todos os lugares, enxugando os suores da vida; e, ainda, com base neste modelo, surgem outras infindáveis situações.
Permito-me divagar, trazendo a imagem da bela passista de Escola de Samba, grávida, dentro de um “biquiníssimo”, no carnaval de 2015, em plena Avenida Sapucaí. Misericórdia, se em Toronto, por exemplo, onde estava batendo vinte e três graus negativos, iríamos encontrar a mesma criatura desfilando os seus passos e a sua formosura! Nunca!
O inverno é introspectivo e calmo.
O frio conduz-se com recato. Impõe a elegância da nobreza. Atua pelas beiradas. Vai chegando devagarzinho. O termômetro revela aos poucos o declínio da temperatura. Em contrapartida, reconheço, a neve é incômoda e traz, até, desastres. Mas ressalto que as pessoas do frio têm comportamento diferente destas nossas aqui, do lado debaixo do Equador. É gente quieta, reservada e de fala mansa, em tom baixo.
 Trancam-se em casa e nos veículos. Não buzinam alucinadamente. Saem para o trabalho e para as compras, porque não há opção. Suas casas ficam fechadas. Aí, evitam barulho e poeira. Não há exposição gratuita nem gestos exagerados. Tratam as crianças com uma terna dureza, sem escândalo. 
Ao buscar respaldo para a inconveniência do calor, socorro-me de Albert Camus, em cujo livro “O Estrangeiro” é evidente a presença do calor nas passagens do seu texto. Em inúmeros momentos, o calor é coadjuvante, quase protagonista. Na cena da morte do Árabe, na beira do mar, o sol acompanha a narrativa, inapelavelmente!
Machado de Assis, no século XIX, já revelava que a “Crônica”, estilo literário, originou-se, tudo indica, no Rio de Janeiro, dos encontros de vizinhos em suas calçadas, em virtude do calor que os retirava de casa, para tomarem a fresca e divulgar os acontecimentos diários, abusando da bisbilhotice.
Dessa forma, é impensável dissociar a vida das pessoas do calor inclemente que nos arrebata. Haverá sempre uma cadência a seguir.
Porém, não devemos sucumbir de todo. O calor tem as suas compensações: sorvete, banho de mangueira, banho de mar e de piscina, caminhadas, sucos, shortinho, rasteirinha, rede no quintal, minissaia, bermudas, cerva bem gelada, crianças brincando na rua, blocos de carnaval, alegria, e demais coisas.
Graças a Deus e aos trópicos!

Alfredo Domingos

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