segunda-feira, 29 de julho de 2019

Existe vida nas palavras


Bromélia, ainda ressentida da hospedagem ao mosquito da dengue, gritou para o marido, Fanfarrão:
- Apanha o dinheiro na burjaca, que está pendurada na chave do armário. Anda rápido. 

O marido, do alto do corpanzil e munido do espavento peculiar, respondeu:
- Calma, não é assim, estou me livrando do Brando, que subiu na cama.
- Se você não vier logo, perco a Pantomima, que está por passar. Preciso pagá-la, ainda que com atraso de dias – explicou a mulher.

Nesse instante, entrou Taciturno, filho mais novo, com a habitual mudez, mostrando em suas mãos uma brocha, das grandes, interrompendo temporariamente a discussão. O jovem é colecionador arraigado de quase tudo: teteias; repiques; chaveiros; canetas; bonés; caixas de fósforos; canecas; bilboquês; canários em gaiolas; bufos; etc. Enche-se consigo mesmo e com as coisas que consegue coligir. Basta-se.

- Pronto, por sua causa perdi a passagem da Pantomima, ela está indo lá, repleta de gestos. Eta, moleza! Vou ter que esperar o Jazigo, que apenas virá amanhã, se vier, pois é um “pé na cova”, quase morrendo – olhando pela janela, Bromélia continuou o desabafo, pra lá de raiventa: - Quer saber? Não tenho mais paciência. É a velha história: sempre se atrasa, não vê e não se lembra de nada, estando alheio a tudo. Só me vem com tartufices. Estou convencida de que você não tem jeito. Deve ser, até, minha culpa. Assumo. O tempo do nosso casamento é maior do que o seu de solteiro. A sua mãe está isenta. 

A cena transcorreu na casa de praia, no doce bairro de Alfajor, cidade de Altaneira, nos raros momentos de descanso de hoje. Os velhos bons tempos foram passados ali. Quando os filhos eram menores, não havia férias, fins de semana e feriados em que todos não estivessem presentes.

A situação atual da família, porém, é outra, diante da escassez de recursos. A realidade não comporta excessos. Os prazeres são cada vez mais incomuns.

Os filhos são três: Taciturno, já apresentado pela intromissão, Ermitão e Brisa.

Ermitão deixou os estudos de “luthier”, abandonou os pinhos e embrenhou-se pelo interior, até que deu com os costados em uma ermida, iniciando-se na ajuda ao sacerdote local. Na verdade, esforça-se para não ser um leguelhé, mas o contexto não lhe é favorável. Nos “antigamentes”, viajava muito, ficando ausente por períodos extensos, o que provocou o seu afastamento do convívio familiar, principalmente dos espalhafatos de Fanfarrão.

Ao tentar analisar o último dos filhos, vale indicar que Brisa é indomável. Locomove-se sem ser percebida, é fugaz. Parece estar em vários lugares em um só instante. Esbanja leveza em sua presença. Sabe ser receptiva e delicada. Merece o apelido que tem: Benfazeja.

Presentemente, com a perda do emprego na fábrica de astrolábios, Fanfarrão ficou sem rumo. Passou a dedicar-se ao artesanato de onomatopeias, o que lhe toma muito tempo, consumindo-lhe, inclusive, os sábados e domingos, além de produzir intermitentes sons ao labutar. Dedicar-se ao lazer ficou difícil, não havendo oportunidade para os jogos de celeuma com os amigos. Menos mal, porque dava muita disceptação.

Resta a ele, na reclusão do banheiro, cantarolar: “bulimia, aqui me tens de regresso; e arrogante te peço a minha nova refeição...” 

A mulher, que não trabalhara antes, colocou-se a fazer pilhérias e peripécias para aumentar a renda. A venda lhe impõe mirabolantes sacrifícios. É dureza! Ainda bem que conta no empreendimento com a prima Lambreta, para percursos de poucos quilômetros. Quando esta falta, a colaboração parte da velha amiga Lamborghini, de resistência muito maior, que propicia trajetos mais longos.

Tia Estrepitosa, escandalosa, mas caridosa e carinhosa (e tudo o mais positivo que tiver “osa”), amofinada com a penúria financeira dos queridos, resolveu doar, vindas do sítio, compotas de mandinga. Umas, para variar o gosto, levam pitadas de engodo. São obtidos uns bons trocados pela iguaria, felizmente!

É preciso superar as dificuldades. Uma das qualidades dos seres humanos é a adaptação, embora haja sempre resistência às mudanças. A união das características de cada membro da família, contudo, é boa medida para a recuperação, para emergir dos momentos de agruras. 

Fanfarrão insere alegria e simplicidade. Bromélia é bom exemplo de resistência, sabendo guardar para quando faltar. Taciturno, introspectivo, pode revelar-se um pesquisador. Ermitão, com suas experiências de se virar sozinho pelo mundo afora, tem o que somar quando o empreendedorismo se faz necessário. Brando presencia a tudo em silêncio, somente latindo quando incomodado. Finalmente, deixada por último de propósito, Brisa distribui frescor e inocência, elementos necessários ao desempenho dos demais.

Alfredo Domingos

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