terça-feira, 12 de maio de 2015

O homem que mofa... E escreve


Trabalha sem parar. Sua vida é isto. Sala acanhada. A cadeira de sempre, de pau e de tecido surrado e rasgado. Escrivaninha velhíssima, onde gavetinhas já estiveram por lá. Janela fechada. Luz fraca, amarelada.

A cara enfiada no computador. Folga para fazer o quê?

Pés fincados no chão, comprimidos por sapatos da cor marrom, de cadarços. Meias de seda umedecidas. Cotovelos enterrados nos braços da cadeira. Óculos embaçados, trazidos na ponta do nariz. E o nariz pontudo. Mãos frias e frenéticas sobre o teclado danificado. Dedos tortos, como tortuoso é o gengibre. Unhas mofadas.

Ideias muitas. Sentimentos à flor da pele. Detalhes. Velhas e gratas lembranças. Necessidade de colocá-las na eternidade. Certo toque bem-humorado. Ansiedade por escrevinhar tudo que a memória ainda armazena. Escrever é sofrido. Não imaginem moleza. Quando bailam as emoções, a leveza se ausenta.

Gatos asmentos por companhia, entre as pernas.

Paredes úmidas. Verdes. Sensação de frio. Folhas desorganizadas no armário de portas emperradas. Livros despencando da estante torta. Caixinha de lembretes de couro mofado. Lata do lixo transbordando.

Filtro de barro para fornecer água que rareia. Torneira pingando o pingo. No chão, mancha verde.

Guarda-chuva sem o pano, encostado na parede, toda hora a cair, com varetas inconvenientes.

Biscoitos murchos numa vasilha plástica sem tampa, quase tombando da mesa. Balas do tempo do ronca. Caneca encardida, com a asa quebrada. Resto de café no fundo, há séculos!

Molho de chaves de umas três ou quatro casas. Tantas chaves. Algumas enferrujadas.

Calendário do ano passado. Ultrapassado, claro!

Lápis sem ponta. Caneta sem carga. Toquinho de borracha.

Mofo. Verde.

Cheiro de coisa velha.

Colarinho roto, da camisa puída. Abotoaduras faltando a pedra, que era verde.

Vidro da janela imundo.

Rádio de pilha com antena quebrada e som com ruídos.

Velho chapéu preto de feltro pendurado no cabideiro.

Tapete destruído, quase careca, com cara dos anos 1980. Paraíso de ácaros.

Este é o cenário sombrio de um escritor entregue à sua lida. Mas não pensem ser algo horripilante! Cada um segue a vida que consegue ou quer fazer. Ele não possui cabeça para circunstâncias diferentes. Costureiro obstinado em costurar tramas. Superar-se. Transformar retalhos de divagação em colcha de pensamento. Aparar os pedaços bicudos, tornando-os arredondados, moldados à história pré-concebida. Como é difícil sair do verde do ambiente para o azul do céu da realização! O que parece não ter consistência acaba fazendo sentido. Sim, o sentido do criador da obra. Aquilo que ele idealizou. Muitas são as tentações para sair dos trilhos. Enveredar por caminhos vãos. Colocar a língua para fora e eca!... Tentar corrigir injustiças, dar a mão à palmatória, elogiar, espinafrar, provocar boas ações, destacar bons exemplos ou simplesmente contar doces histórias, sem maior compromisso. Tudo isso pode! Mas o que não pode é ele, de repente, deixar de ser ele. Não dará certo. Nem conseguirá. Há procedimentos e modos de pensar enraizados na gente. Impossível mudá-los. A solução, por exemplo, não reside em tomar um banho e se livrar. Não. É mais complicado. Não sabemos ao certo se queremos nos livrar, ainda há isso!...

O nosso escritor vive assim e não se afasta. É parte do seu ser, sem dúvida. E tudo está amalgamado. A sua produção resulta da mistura de ambiente e mente. A inspiração está aqui, ali e acolá. Sendo que o aqui é nele.

Não acreditem numa depressão. Não existe. O imaginável abatimento moral não está presente. Provavelmente, há desleixo. Admite-se. O que não incomoda não prejudica. Arrumadinho é prato feito à base de feijão, charque, toicinho e farofa, com os componentes muito bem arrumados para servir. Uma baguncinha não mata ninguém e não rouba os devaneios do escritor, não inibe frase magistral como esta: “A vida é aquilo que acontece enquanto fazemos planos para o futuro” (John Lennon).

Trato da aparente contradição para trazer à pauta a reflexão de que nem tudo obedece a um script, com raras exceções. A opção pelo pão, pão, queijo, queijo está démodé. Devemos ir ao topo da onda e descer nela para provar dos altos e baixos, tendo condição de reagir, da maneira que conseguirmos. Não implica apenas termos sucesso. O desincumbir-se já é grande feito.

Ressalto, sem pestanejar, a insistência do escritor, operário das palavras, na magnífica arte de escrever. Comunicar-se. Emocionar-se.
Dane-se o resto! Salve!

Alfredo Domingos

Um comentário:

  1. A magnífica arte de escrever: trazer à tona a vida que há nas palavras!!

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